A
História do último homem que falava o Patuá di Macau como se fosse uma língua
viva do cotidiano
Recebi a notícia do
falecimento do sr. Carlos Coelho, 64, ocorrido na passada sexta, (19/01/2018)
em Macau, antiga possessão portuguesa no sul da China. Ele teve um mal súbito
no banheiro (“casa de banho” em português de Portugal). Socorrido pelo filho,
Carlos foi levado ao hospital, mas faleceu uma hora depois.
Quem foi Carlos Manuel Gracias Coelho? Era considerado o mais fluente
falante de um idioma em vias de extinção: o Patuá di Macau, a língua crioula de
base portuguesa com influência de diversos outros idiomas, entre os quais o
cantonês.
Eu não o conheci pessoalmente.
Eu aqui do Brasil e ele no outro lado do mundo, em Macau, mantínhamos contato
pelo facebook. Foi através dessa extraordinária tecnologia que encurtou todas
as distâncias, algo impensável até pouco tempo atrás (quem tem mais de 40 sabe
exatamente do que estou falando) que o entrevistei para meu livro “Parlons
Patuá di Macau”, concluído ano passado, mas ainda em fase de revisão para seu
lançamento na França.
Cheguei a Carlos por indicação
de Rogério Luz, o jornalista da comunidade macaense em São Paulo, aqui no
Brasil.
Pesquisa
Em 2015, viajei a São Paulo
ocasião em que conheci pessoal Rogério que mantém o blogue Cronicas Macaenses, com notícias e artigos sobre
Macau, a famosa cidade que fora por cinco séculos a possessão portuguesa na
China. Em 1999, a cidade foi devolvida à soberania chinesa.
Nascido em Macau, Rogério Luz
imigrou para o Brasil na década de 1960 onde reside até hoje em São Paulo. No
blogue em questão, Rogério reúne uma verdadeira biblioteca especializada de
artigos, crônicas, fotos, filmagens, enfim, documentos dos mais diversos sobre
a história de Macau e sua gente. O foco de seu blogue é a comunidade falante de
português dessa cidade singular que exerceu por séculos o papel de grande
entreposto comercial do ocidente com o oriente.
Na viagem de pesquisa, conheci
a Casa de Macau, a escritora de peças de teatro cômicas, Mariazinha Carvalho e
o casal Manuel e Yolanda Ramos. O objetivo da entrevista foi reunir dados sobre
a língua Patuá di Macau, um raro crioulo de base portuguesa hoje falado por
mais ou menos apenas 100 pessoas no mundo.
Sim, Macau tem 600 mil
habitantes, destes apenas 8 mil são falantes de português numa região dominada
pelo cantonês, como se chama o chinês do sul daquele país, diferente do
mandarim, a língua oficial. Dos oito mil falantes de português na região, há
por volta de apenas 100 falantes do crioulo, um idioma em que o português
misturou-se com o cantonês, malaio, inglês, entre outras contribuições.
Na pesquisa, eis que cheguei a
Carlos Coelho.
Resgate
Aqui não tem o objetivo de
contar toda a história do patuá. Aguardo com ansiedade o término da revisão de
meu livro e a publicação da obra pela editora L´Harmattan, com sede em Paris,
França. Tenho um compromisso com todos os entrevistados. Por isso, peço-lhes
desculpas antecipadas pela demora, mas vai sair. Tomara que dê tudo certo.
Mas em rápidas palavras, o
patuá, que outrora foi muito falado, foi aos poucos extinguindo-se para chegar
hoje a um número tão exíguo de falantes que, reunidos, cabem em apenas uma sala
de aula sendo que parte deles vive no Brasil. Portanto, os falantes de patuá na
própria cidade de Macau é menor ainda do que 100.
História
Nascido em 1953, Carlos passou
toda sua existência em Macau. Filho de pai português e mãe macaense, Coelho
pertencia à comunidade lusófona daquela cidade, isto é, os filhos e netos de
portugueses com mulheres orientais. Trata-se de uma comunidade mestiça que
adotou o idioma português e mantinha uma vida muito ligada à cultura
portuguesa, mesmo a um quase planeta de distância.
Segundo Rogério Luz e a
teatróloga Mariazinha Carvalho, da comunidade macaense de São Paulo, Carlos era
uma autoridade em patuá, pois “falava fluentemente o dialecto como se fosse a
língua do dia-a-dia.”
O patuá é uma língua quase
morta, literalmente na UTI (Unidade de Terapia Intensiva). Não é mais uma
língua comum nas ruas. Raros a falam (se é que falam). O motivo é simples: os
falantes mais fluentes faleceram. Encontrar alguém com quem conversar em
crioulo tornou-se raridade tanto na Macau dos dias de hoje como também entre a
comunidade de imigrantes macaenses que se estabeleceram em São Paulo.
Carlos era um apaixonado pelo
patuá que, para ele, carregava todo o espírito da antiga cidade de Macau, uma
“ilha de Português” dentro da China, onde o Ocidente fundiu-se com o Oriente
formando uma dialética da região que não é nem Portugal nem a China, mas um
novo mundo e uma nova cultura chamada “macaense”.
OBS: Macau não é uma ilha, mas
uma península.
Aprendizado
Segundo contou-me Carlos, em
nossa entrevista via facebook, o patuá já estava em vias de extinção na década
de 1960. O avançar dos anos ao longo das décadas de 1970 e 1980 foi colocando
paulatinamente no caixão cada um dos falantes que ainda podiam papear em
crioulo com total fluência e com os quais o jovem Carlos, ao contrário do
desprezo geral, aperfeiçoava-se no conhecimento da língua.
Sim, Carlos interessou-se pelo
idioma que infelizmente sofria preconceito. O patuá era considerado um “português
mal falado”. Tanto é que a mãe de Carlos, dª Adolfina Gracias, proibia-o de se
expressar nessa língua. Isso estendia-se na escola. Segundo Carlos, os
professores ralhavam com os alunos flagrados usando o crioulo alegando que, se
continuassem assim, jamais iriam aprender a falar bem o português. Era
exatamente o mesmo argumento de sua mãe.
Apesar de ser falante do
patuá, a mãe de Carlos só conversava em português com ele e seu irmão.
Carlos teve o primeiro contato
com o crioulo com sua avó materna, Maria Cecília Gracias, falecida quando ele
era bem jovem. Coelho evitava falar patuá na presença de sua mãe, mas foi
aprendendo o idioma porque seus tios Luís Gracias (Tio Lolô) e Maria Gracias da
Luz, além de seu primo Tarcísio Gracias da Luz (o Chicho-Gordo) e a tia de sua
mãe, Ana Maria Gracias Chan (Chat-Ku ou Auntie Annie), com os quais tinha
frequente contato, falavam o citado idioma.
O crioulo nunca foi ensinado
nas escolas de Macau. O desprezo não permitia sequer que o idioma aparecesse
numa página ou numa coluna nos jornais lusófonos daquela cidade.
Se tivesse um curso, uma
escola ou algum grupo de estudos do patuá, Carlos certamente frequentaria, mas
não havia. Então, para aperfeiçoar-se no idioma, Coelho passou a procurar as
“nhonhas”, ou seja, aquelas senhoras idosas que falavam o idioma fluentemente.
“Quando
tinha a oportunidade e quando as ocasiões proporcionavam a oportunidade, eu
falava com as poucas senhoras macaenses que ainda viviam. Então para mim era
como um grande acontecimento e uma grande festa. Vibrava por dentro e adorava
que a conversa nunca mais acabasse. Na conversa utilizava o patuá que
aprendera, e ao mesmo tempo aprendia mais termos que já não me lembrava ou que
nunca tinha aprendido. Ia assim acrescentando mais palavras ao que já sabia
deste dialecto. Adorava ler os livros e artigos em patuá do autor José dos
Santos Ferreira (Tio Adé) que tive o prazer de conhecer pessoalmente quando
ainda criança e depois já quando era crescido”,
contou.
Carlos mencionou José dos
Santos Ferreira (1919-1993), o poeta Adé. Trata-se do “Pai do Patuá”. Adé
passou a publicar livros escrevendo poesias e crônicas nesse idioma advogando a
ideia de que o crioulo é uma língua tão bela quanto o português e que pode ser
preservada e cultuada artisticamente, pois contém a “Alma Profunda de Macau”.
Carlos foi influenciado por
Adé como também muitos macaenses, que antes viravam o nariz para esse idioma,
passaram a ter olhos mais compreensíveis e menos preconceituosos com relação ao
crioulo após conhecerem a obra do mencionado poeta.
Mas isso não foi suficiente
para salvar o idioma. “Triste é saber que
com o passar dos tempos esse dialecto aos poucos irá cada vez sendo menos
falado”, dizia Coelho.
Permanecendo
Em dezembro de 1966, Carlos,
na época um adolescente de 13 anos, foi testemunha de uma grande onda de
imigração de cidadãos macaenses que partiram para o Brasil, Estados Unidos,
Canadá e Austrália.
O que provocou essa onda foi
tanto a possibilidade de uma invasão militar da China, na época governada pelos
comunistas de Mao Tse-Tung (1893-1976) como também a falta de empregos e crise
econômica na região.
A família de Carlos permaneceu
e Macau aos poucos melhorou e transformou-se numa próspera cidade.
Difundindo
o idioma
Na década de 1990, Carlos
ingressou no grupo de teatro Doçi Papiaçam di Macau (trad.: “Doce
falar de Macau”, o título de um famoso poema de Adé.
Por causa de sua fluência fora
do comum, tornou-se ator. Atuou por certo tempo e depois desligou-se.
Para manter a língua, Coelho
passou a publicar crônicas em patuá usando a tecnologia da Internet. Se
antigamente a difusão dava-se por livros e jornais, Coelho via no facebook a
sua “editora”.
E assim Carlos contribuiu para
manter viva a língua.
A notícia de seu falecimento
deixou-me com pesar no coração. Em primeiro lugar, por ele em vida não ter
visto o livro no qual dediquei um importante capítulo para registrar sua
história e zelo pelo idioma, além de toda uma sorte de contribuições. Carlos
explicou-me detalhes culturais, sociológicos e antropológicos de Macau, cidade
que não conheço pessoalmente. Com o livro, queria dar-lhe alegria, sem dizer
que seria uma sorte de agradecimento.
Em segundo, por ele se tratar
do “Último Moicano”, isto é, parodiando o título do famoso romance de Fenimore
Cooper (1789-1851), por ser talvez o último que falava o patuá “como se fosse
uma língua do dia-a-dia”. Sexta-feira,
19 de janeiro de 2018. Quem sabe, junto com Carlos, foi também a data da morte
do “Doçi Papiaçam di Macau” (refiro-me não ao grupo de teatro, mas sim a como o
poetá Adé referiu-se ao idioma).
Não existe língua “bonita”,
“feia”, “rica” ou “pobre” ou o adjetivo que seja. Todas as línguas expressam a
universalidade da vida. O que leva uma língua à riqueza é seus falantes.
Carlos Coelho fez sua parte.
Qui bom conhecê vôs. Que
Deus o proteja e que os anjos iluminem seu caminho! Descanse em Paz! Ozias Alves Jr – Brasil in “JB
Foco”
Email:
ozias@jbfoco.com.br
Para ler os escritos de Carlos
Coelho em Patuá de Macau colecionados por Ozias
Alves Jr aceda aqui
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