Tudo no
mundo começou com um sim. Uma molécula
disse
sim a outra molécula e nasceu a vida.
A hora
da estrela, Clarice Lispector (1977)
Quando em 1925 Cecília Payne demonstrou que
as estrelas eram compostas principalmente de hidrogénio e que podiam ser
classificadas segundo a sua temperatura absoluta, o coletivo de astrónomos
deixou de pensar que a composição do Sol era semelhante à da Terra. Os
cientistas aceitaram a proposta de Cecília, que mudou o sistema de
classificação de estrelas, o único utilizado na atualidade.
A ciência caracteriza-se pela capacidade de
assumir novos conceitos. O bom cientista procura não ser escravo dos seus hábitos
de pensamento, prefere manter-se aberto às observações e abordar os problemas
de diferentes perspetivas. Estas capacidades costumam dar bons resultados,
assim que se de quando em vez introduzíssemos um pouco dessa coerência no nosso
mundo particular algumas cousas poderiam ir melhor.
O coletivo nada homogéneo de pessoas que
apoiam e cultivam diariamente na Galiza o português galego está formado por
associações e grupos de língua, ecologismo, informática, artes e artesanias,
boletins, jornais e revistas em papel e internet, blogues e páginas web
pessoais. Centros sociais. Clubes de leitura. Coletivos feministas. Editoras
literárias. Grupos musicais. Uma crescente prática individual, de professorado
universitário e não universitário, de alunado. Uma academia de língua. Partidos
políticos. Concelhos como o de Corcubiom oferecem a sua página também em
português.
Quer dizer, na Galiza diariamente algumas
pessoas mantemos nas nossas relações sociais, laborais e tecidos associativos
uma prática linguística que, segundo outras pessoas, não é possível manter.
Para estas últimas é impossível a aplicação da norma internacional do galego
nas aulas. Não pode aplicar-se no emprego, nem serve para a política, nem para
reivindicação eficaz de direitos civis. Quem assim opina parece querer
dizer-nos que isso do português galego é pura teoria, apesar de que os textos
que escrevemos, as reuniões que fazemos, as aulas que damos, os eventos que
organizamos, os livros que publicamos, os discos que gravamos e as palavras que
dizemos demonstram que a prática está aí, presente e repetindo-se a cada dia.
Esta prática não tem nada de extraordinário
nem de revolucionário. As que assim nos conduzimos não violamos nenhuma lei do
estado. Sabemos que o modelo de língua promovido pelo regime espanhol para o
galego não é, nem foi nunca, oficial. Ninguém nunca teve obrigação de
obedecê-lo. Nem sequer na função pública. E por isso somos livres para exercer
o nosso direito a escolher e usar o modelo de língua que preferimos. Para
explicar-nos o fenómeno da prática real do português galego na Galiza só temos
duas opções: Ou começamos a acreditar como bons cristãos em milagres do nosso
senhor, dado que algumas conseguimos fazer cousas que não é possível fazer, ou
abrimos os olhos e assumimos que na Galiza pode haver e há um certo uso normal
do português galego, tal como faria um honrado cientista.
O hidrogénio já ardia nas estrelas quando a
astronomia ainda não sabia que tal pudesse acontecer. Mas uma vez descoberto e
explicado o processo, e vendo que a novidade desborda o conceito anterior,
devemos ultrapassar os limites auto-impostos e admitir como possível o que
antes achávamos impossível. E, acreditem, abrir os olhos à evidência é tão
beneficioso quanto necessário. Pode que a formação do professorado galego
reintegracionista ainda não seja suficiente e, por isso, a confiança nas nossas
possibilidades seja ainda melhorável. Pode que o número de pessoas que aplicam
o português galego nas aulas também seja insuficiente e o processo de formação
da estrela mais lento do esperado. Mas a
resposta a isso não pode ser o abandono ou o medo. Temos de achar os meios e os
argumentos para avançar com o que achamos correto.
Escrever diferente é pensar diferente. A
prática diária doutro modelo de língua abre a mente para novas ideias, novos
contatos, serve para perder o medo a nos comunicar com pessoas de outros
países. Ajuda a alargar as nossas aspirações, a querermos mais e melhor, a
saber oferecer o melhor de nós mesmas. Aprender português galego vale para
melhorar a nossa compreensão leitora, a capacidade de análise, a mudança de
perspetiva, acabamos lendo textos de todo tipo de procedências, de pessoas que
podem comunicar-se connosco porque usam a nossa língua. Escrever assim alarga
os temas de conversa, serve para reconhecer as armadilhas dos administradores,
estes sim, oficiais. Como lhes foi doado confundir-nos com as sucessivas
mudanças de leis da educação e de “normativas” gráficas. Como os livros de
texto reproduzem os mesmos erros, os mesmos silêncios e os mesmos preconceitos
ano após ano, e como ano após ano se degrada a qualidade da língua que transmitimos
aos filhos e ao alunado. No mundo lusófono está, ademais, toda essa literatura
absolutamente maravilhosa que sempre nos diz mais do que pensamos, cheia de
surpresas fascinantes que despertam a imaginação e satisfazem as ânsias
leitoras mais exigentes.
Certo que utilizar o português na Galiza é
algo mais do que trocar umas letras por outras. Há que aprender a falar a
língua, isso que sabiam bastante bem as nossas avós e que hoje perdemos em cada
enterro. Ademais há que aprender a escrevê-la, um outro abecedário, um outro
sistema de acentuação e saber aplicá-lo. Há que usar muito o dicionário e a
gramática para recuperar o tempo perdido. Há que mergulhar no mundo de fala
portuguesa até sentir-nos tão cómodas nele quanto ao escutar um forte sotaque
andaluz. Esta certeza depende diretamente do conhecimento que temos do mundo
lusófono, do número de amigos brasileiros, angolanas, timorenses, da frequência
de comunicação com elas e o tipo de eventos em que coincidimos. E ainda não
chega, porque a relação deve fazer-se com vontade de identificação, dentro do
respeito à diferença, procurando a cumplicidade através da língua, porque a
conhecemos e a reconhecemos, porque ademais de ser nossa, a fazemos nossa.
Nesse processo que tod@s deveríamos começar
quanto antes, algumas levamos já muitos anos, somos conhecidas nos nossos
empregos e entornos precisamente por esta prática civil, pelo discurso aberto e
a atitude rebelde face aos ditados administrativos quase sempre abusivos e até
ilegais. Aqui estamos, exercendo a escolha soberana deste soberano modelo de
língua, trabalhando assim desde há anos e com as famílias opinando e falando
sobre o assunto. Sem complexos nem limitações. Preocupando-nos por que a gente
saiba. Procurando precisamente que saibam.
Um exemplo desta atividade é a Equipa de
Normalização da Língua Galega do compostelano Conservatório Profissional de
Música, que durante o passado ano desenvolveu a sua atividade em português
galego e este ano vai pelo mesmo caminho. O próximo evento programado terá lugar
a quinta-feira 19 de dezembro, às 21h na catedral da cidade, lugar onde se
celebrará o Concerto de Natal com motivo do 10.º aniversário do centro, em que
o alunado interpretará várias obras para coro e orquestra. A EDLG colabora na
elaboração de cartazes e programas de mão, difundindo o português galego entre
estudantes, pais, mães e professorado, ademais dos visitantes da catedral e a
cidadania compostelana. Mas este é somente um exemplo, há mais professorado
galego a levar para a frente a tarefa de divulgação do modelo internacional da
língua. Este artigo quer ser uma homenagem a essas pessoas e também uma lente
telescópica para as que permanecem ignorantes desta realidade.
O hidrogénio, primeiro elemento da tabela
periódica, é o componente mais abundante das estrelas. Ali desencadeia as
maiores explosões às mais altas temperaturas do universo. A muita distância,
graças à observação e ao uso da razão, a professora Payne desenvolveu um método
de classificação estelar tão útil e fiável que não foi superado até agora. A
ciência sabe reconhecer quando uma teoria responde à prática observada. Não
viria mal aprendermos disso. Vivemos a hora da estrela. A estrela está aí fora.
Os olhos para vê-la, no nosso interior. Isabel
Rei – Galiza in “Sermos Galiza”
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