“Enquanto português a
Índia marcou-me, não enquanto descoberta de mim através do outro (como me
aconteceu no Brasil), mas como descoberta dessa “essencial heterogeneidade do
ser” de que falava um poeta espanhol de que muito gosto (António Machado) essa
heterogeneidade que está tão próxima, tão intimamente próxima, da nossa própria
identidade.
E agora penso que a
questão deveria ser posta ao contrário: o que é que não me marcou na Índia? É
difícil falar da Índia, quando se cola a tudo o que dizemos o lastro de tantos
discursos, tantos olhares, tantas interpretações pelas quais tentámos, tanto
nós ocidentais como vós indianos (sim, porque também há “orientalistas” no
Oriente), resumir a uma fórmula, a uma interpretação, a um tratado esse
“múltiplo esplendor” (gosto de citar este lugar comum da Han Suyin) pelo qual a
Índia se esconde e se revela num mesmo movimento aos nossos sentidos.
Apetecia-me falar do
coração. Mas começo pela cabeça e, seguindo a lição de um clássico português, o
Camilo, não esquecerei o estômago. A razão de ser da Índia moderna é
evidentemente tomar o seu devido lugar no mundo com todo o peso da sua força,
da sua capacidade, da sua riqueza e da sua inteligência. Mas o coração não
esquece as mulheres violentadas nos autocarros de Deli, os dalits humilhados às
portas das cidades ou a ternura de um inesperado olhar vindo de dentro do
bairro da miséria. E o estômago: a fome combatida por esses milhões de
camponeses, sem rentabilidade para os cálculos económicos modernos, mas sem
alternativa à vista para os estômagos vazios.
A modernidade e a
inteligência mais sofisticada podem coincidir assim com a barbárie? Mas isso
não é exclusivo da Índia, como por demais sabemos. Walter Benjamin dizia que
“todo o monumento de civilização é ao mesmo tempo um monumento de barbárie”.
Grutas de Ajanta ou Capela Sistina, os escravos e os humilhados passaram por
lá e a sua sombra pesa na memória dos
vencidos. Invasões mogóis ou ocupações portuguesas, guerras inglesas, colonizações,
massacres ao fio da espada, o som e a fúria da História perduram na música
obsessiva da memória. Mas eu não fui à Índia para participar na genuflexão
ritual dos colonizadores ante os colonizados. Aliás poucos já se preocupam hoje
na Índia com esse assunto. Quando a Europa se provincializa, certas erupções
anti-coloniais têm o ridículo e o encanto de rendas velhas guardadas num cofre
de cânfora. Afinal quem são hoje os colonizados?
Eu vi os pescadores
de Goa escoltarem, com flâmulas vermelhas e verdes nos seus barcos, o nosso
navio-escola “Sagres”, que viera em visita oficial à Índia, a convite da
Marinha indiana. Fizeram-no, não para sonhar com o regresso das caravelas, mas
para afirmar publicamente que não queriam negar o passado. Ideia que aliás
nunca ouvi a qualquer autoridade indiana em Nova Deli: bem pelo contrário, ouvi
o Primeiro Ministro Manmohan Singh reconhecer publicamente o legado histórico
de Portugal na Índia. E é isso que conta.
Contrariamente ao que
alguns desejariam, os escravos não se tornaram senhores para os senhores se
tornarem escravos. De certo modo compreendemos hoje que somos todos, ao mesmo
tempo, senhores e escravos: senhores, sim, da experiência extraordinária de
globalmente nos conhecermos e de num mesmo instante nos tratarmos; escravos,
sim, de um universal sistema de instantâneos efeitos, que atravessa espaços e
nações e apenas conhece relações de força e diferenciais de riqueza. A cultura,
poderemos dizer então, é o monumento que responde à nossa barbárie? Eu vi o
sorriso elegante de Shiva na Ilha de Elefanta e o olhar apiedado de Nossa
Senhora na Igreja Matriz de Pangim. De um olhar ao outro é o mais comum dos
humanos que enfrenta, com uma misteriosa ironia, os avatares da História e o
orgulho dos homens.” Castro Mendes –
Portugal in “LSG – Lusophone Society of Goa”
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