Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

terça-feira, 28 de novembro de 2017

Galiza - Um manifesto político em ‘Galeguia (antes chamada lusofonia)’, de Manuel Miragaia

Numa entrevista publicada em Jornalirismo, o escritor angolano Pepetela expressava a suas profundas reticências relativamente ao o termo lusofonia, com que se denomina a união dos países de fala portuguesa: “é um mito forjado há pouco e que não vai ter grandes frutos se se continuar em insistir que o que nos une é só a língua”(1).

Precisamente, como alternativa surge a etiqueta galeguia, que remete para as origens históricas e coloca em foco a Galiza, banindo o capítulo colonial que explicaria a situação alargada da língua hoje no mundo. A tentativa não era, contudo, pioneira. O termo galeguia fora já proposto por Luís Ruffato no VIII congresso da Associação Internacional de Lusitanistas em 2005 e, como indicava Bruno Góis (2), a brasileira Adriana Lisboa, os portugueses José Luís Peixoto e Possidónio Cachapa, o angolano Ondjaki, o timorense Luís Cardoso e os galegos Quico Cadaval e Carlos Quiroga mostraram-se favoráveis a esse neologismo. Em 2014, a cantora Aline Frazão, também angolana, reivindicava novamente a etiqueta e, como se sabe, as opiniões do pessoal da música influem especialmente na sociedade. Aliás, Aline Frazão julgava que era uma maneira elegante de esquivar o inominável, a colonização, para num apelo à concórdia, neutro e unificador, apanhar a unidade das variantes espalhadas pelo mundo (3). Logicamente, as suas palavras tiveram grande eco na Galiza porque ressumavam afeto por esta terra:

Não há terra como a Galiza, não há gente como a galega. Quem, dos que falamos português, já foi tocado pela generosidade desse canto do planeta, sabe do que estou a falar. Do Brasil, perguntem ao Chico César ou ao Lenine. Da Guiné, perguntem ao Manecas Costa. De Angola, perguntem ao Pepetela ou ao Ondjaki. Eu mesma vivi em Santiago de Compostela um ano, onde cultivei sólidas amizades e projectos profissionais (lá gravei o meu primeiro disco), vivendo cada dia em português. A maneira como somos recebidos na Galiza ultrapassa qualquer definição de hospitalidade. Falamos a mesma língua e isso nunca teve um efeito tão surpreendente, tão carinhoso. Mas este é ainda um vínculo escondido, um laço invisível, um namoro secreto que deve ser assumido oficialmente e bradado aos sete ventos. […] Vai ser que, afinal, não falamos a língua do colono: falamos galego de Angola, com o sabor bantu do Atlântico-Sul.

O recente livro de Manuel Miragaia pode ler-se como um contributo a esta guerrilha da comunicação que demostra as colisões internas dos átomos, as suas fricções e roçamentos, numa língua que ocupa o sétimo lugar entre as mais faladas do mundo. O autor intitula precisamente o seu poemário Galeguia (antes chamada Lusofonia) e Manel Cráneo, o seu potente ilustrador, propõe como capa uma casa de pedra em cuja porta, uma labrega galega, com socos e chapéu de palha, figura acompanhada dum preto e dum indiano do Brasil. As três personagens têm qualquer cousa nas mãos: a galega um pão, o africano um globo terráqueo e o brasileiro um forcado de duas pontas. Mas ainda falta um elemento: ao pé deles três foi colocado o galo de Barcelos. Portugal é apenas representado por um objeto simbólico, como se quisessem transmitir-nos que a força libertadora do grupo descansa n@s oprimid@s. Ainda bem que a editora Chiado, portuguesa, reserva como logótipo um pequeno círculo onde figura o próprio Pessoa; noutro caso até poderia parecer um agravo contra Portugal. Não tal. Porém, antes de tomarmos posicionamento num debate que se apresenta polémico, importa é dizer que este livro nasce duma ferida.

As feridas podem ser múltiplas. As mais inofensivas são chagas minúsculas na pele que deixam o tecido interno à vista. Lavamo-las cuidadosamente; cobrimos as feridas com um apósito e confiamos em que curem. Porém, algumas são mais profundas: procedem de grandes afrentas com a sua carga de dor e humilhação. Na descrição habitual, indica-se que os ferimentos são feitos por utensílios, por armas ou por comportamentos simbólicos. Quase sempre é esquecida a palavra como causa da ferida. É frequente escutar numa discussão que tal ou qual aspeto constituem apenas uma questão terminológica. Quem assi falar está a suster que as palavras são tema menor, que estorvam porque escurecem os conceitos. Quem assim falar está orgulhoso de não ser suscetível. Situa-se por cima das emoções; situa-se na magnífica ingenuidade de Leibniz que, quando uma vez propus um sistema de comunicação artificial, estava certo de poder escapar da ambiguidade e a vaguidade das línguas humanas, presumivelmente defeitos, e ainda de superá-las com um sistema da sua invenção. Leibniz era, sem dúvida, um homem seguro de si próprio. E um bocado ingénuo, visto que considerava que com o seu artefacto permitiria desvendar quem de entre os participantes num debate teria razão porque com uma língua lógica e perfeita chegaria um momento em que o equivocado simplesmente não poderia construir a seguinte frase. Porém, muitos de nós, muitas de nós, em particular, somos suscetíveis. O feminismo, por exemplo, foi elaborando um relato potente sobre a falta de inocência das palavras. E o mesmo pode dizer-se de todos os movimentos subalternos. Ser oprimido implica sempre adaptar-se aos conceitos e valores do opressor, renunciando aos próprios: isto serve para o relato de classe, para o relato de raça, para o relato de género e para quaisquer outras diferenças. Daí que Manuel Miragaia empreenda nesta entrega poética uma reescritura da história, através da língua comum. Todo um repto.

O desafio de Manuel Miragaia é praticado sem concessões num repasso pormenorizado a diferentes figuras da história preteridas ou invisibilizadas. O monte Medúlio −aquele episódio mítico onde até as mães envenenam os filhos e a si próprias para serem antes mortas do que escravas−, o rei suevo Hermerico −o primeiro conde de Portucale, nascido, por acaso, na Crunha− ou o mariscal Pero Pardo de Cela, que resistiu o assédio dos reis Católicos e só foi apresado pela traição dos seus criados−, como outras figuras mais modernas: Rosalia de Castro, Castelao, o Johán Vicente Viqueira das Irmandades da fala, o guerrilheiro Foucelhas ou o sensível artista Man. Também pululam por Galeguia personagens doutras latitudes: o Zumbi dos Palmares −o último líder dum quilombo do Brasil colonial− o Tiradentes −executado por ter participado na conspiração de Minas Gerais contra o domínio português− ou Amílcar Cabral, libertador de Guiné-Bissau e Cabo Verde. Todas elas circulam pelo poemário junto a outras vozes plurais e coletivas: a da outra Galiza, interior e abandonada, a dos pobres mareantes, a da Mátria.

Galeguia é um texto com vocação épica e política e, nesse sentido, antipoético. Não pretendo com isto dizer que esteja falto de beleza. Simplesmente, o autor não pretende apressar a palavra e reduzi-la à mínima expressão, como é habitual na poesia contemporânea. Ao contrário, Manuel Miragaia transita um universo fortemente narrativo, onde a rima é um recurso de bardo, a repetir um som monocorde, incessante, com ressonâncias solenes. O objetivo, a meu ver, é difundir um manifesto político: informar dessas figuras, relatar a história dum agravo e infundir coragem a quem ler. Os poemas “Sermos bisagra” e “Carta galega ao Estado espanhol” são indicativos deste afã e, para quem lê na Galiza, é impossível não lembrar o Ramom Cabanilhas de “Em pé”.

Voltemos ao começo. A palavra Galeguia vinha a manter vivo um debate, o das línguas usadas como arma política. Uma fronteira política convencional colocou a Galiza dentro do estado espanhol e fora do estado português, mesmo se falamos a mesma língua. Com o tempo, esse processo determinou que na Galiza se tornasse oficial uma variante com traços de crioulização entre o português e o espanhol e escrita tendo este como modelo, numa decisão que visava conseguir a sua aceitação como língua escrita e a sua introdução nas escolas, no melhor dos casos, ou para evitar qualquer movimento separatista, na versão política que muitos de nós preferimos e que a atualidade do caso catalão obriga a revisar: a unidade da Espanha não pode ser questionada, a menos que se pretenda ser acusado de sedição.

Mas também essa irrealidade convencional do estado é a que determina que territórios afastados da metrópole e dominados por ela (Brasil, Angola, Moçambique, Cavo Verde, Timor) se vissem obrigados a abandonar as suas magníficas línguas, muitas delas em franca agonia. A ideia de as línguas serem uma pertença em exclusivo dos seus falantes responde a uma ótica nacionalista no sentido em que usa este termo na Europa: uma ótica chauvinista e folk. As línguas são, como a arte ou o conhecimento científico, patrimônio cultural de todos os seres humanos, e a sua perda faz com que a humanidade seja a cada ano mais pobre, mais homogénea. A ferida volta a sair à luz. Quem negar as palavras não poderá ressarcir depois com elas. A colonização exercida por Portugal ou por qualquer outro estado é um episódio triste, que implicou a exploração da classe trabalhadora, o racismo, as humilhações exercidas manu militari, a expropriação dos recursos naturais das etnias submetidas, e uma, mais que evidente, destruição da natureza −dos rios, das florestas, dos mares, das substâncias naturais sanadoras que se encontram na selva−. Mas também a colonização exercida pelo estado espanhol na Galiza inclui esses episódios, exceto talvez o de raça porque somos pálidos como os suevos, mas lembremos com quanto rigor e seriedade científica queriam os sábios gramáticos manter nos dicionários do espanhol a aceção de ‘parvo’ para o termo galego.

Como quase todos os problemas políticos a questão é ordenar as prioridades. O livro de Manuel Miragaia obrigou-me a matutar muito seriamente sobre se era uma prioridade a questão da etiqueta. Acho que não. Não tenho problema com lusofonia porque priorizo é que nos agasalhem com a sua cumplicidade e com o seu respeito os irmãos que moram lá fora e que falam outras variedades da nossa mesma língua. Lusofonia, para mim é um termo perfeitamente válido e discordo com Pepetela: o facto de apenas estarmos unidos pela língua não é questão menor; eis a nossa força. Mas olho com curiosidade a tentativa de reapropriação praticada pelos partidários de Galeguia; a reapropriação sempre é punk, sempre é feroz, estimulante. Cá, na Galiza, para convencer o pessoal falto de autoestima, muitas vezes evitamos o termo português e usamos o de galego internacional, que ainda muitos utentes de normativas reintegracionistas detestam com o curioso argumento de o galego não precisar internacionalidade para ser. Obviamente. O euskera é uma língua e não precisa de apoio exterior. O catalão é uma língua e não precisa ser falado além das suas fronteiras. Porém, termos a hipótese de difundir os nossos produtos sem passar por intermediários, de enriquecer-nos com as nuances do galego bantu de Aline Frazão ou do galego amazônico, ou do galego do Algarve, é uma oportunidade que não estamos em condições de esbanjar. Para a supervivência do galego em concreto, importa é ser internacional.

Hoje, quando a AGLP já entrou na CPLP, bem que nessa condição inquietante de observadora, o debate pode ser interessante. Para não ver a língua como instrumento duma história passada de opressão, mas como uma ponte para partilharmos literatura e música, comércio, ideias, espaços de encontro, conceitos académicos. Sem que ninguém tenha que deixar de ser quem é.

Manuel Miragaia trabalha lá, introduzindo neste Galeguia, que é um texto pedagógico, um apêndice com informação das figuras que uns estados que vivem de costas viradas não difundiram, e com as palavras da variante galega que não são usadas em Lisboa e que ele está a reivindicar. No seu texto, para além do projeto inicial, aparecem outros muitos temas: a conquista da soberania política, ecos antipatriarcais e um profundo amor pela paisagem que produz um poemário suscetível duma leitura ecocrítica.

Parafraseando Aline Frazão, vai ser que, afinal, não falamos a língua do colono, que no nosso caso é o espanhol: falamos português da Galiza, com o sabor indígena do Atlântico-Norte das nossas rias. Teresa Moure – Galiza in “A Tecer aranheiras”

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