Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

domingo, 25 de maio de 2014

Sempre em Galiza: o lugar da esquerda de Portugal

Já foi há quase dez anos que visitei pela primeira vez a Galiza, para participar no Dia das Letras Galegas. E lembro-me nitidamente, como se hoje fosse, da súbita sensação de assombro com que me vi fora de Portugal sem sentir que já tivesse saído.

Como a maioria dos meus compatriotas lusos, pouco sabia sobre a velha Galécia, terra verde e bonita de uma beleza séria e fundamental. Os portugueses, que vivemos há demasiado tempo de costas voltadas para os nossos irmãos galegos, fomos ensinados a falar de uma coisa chamada “Espanha” como um monólito impenetrável de afectações andaluzas e jeitos de toureiro. Mas a Galiza é um país diferente, onde o português não encontra forma de se sentir estrangeiro. Foi isso que senti, quando a minha amiga Sabela, do Grove, me falou num português perfeito, inspirado de uma pronúncia límpida e ancestral ou, quando pelas ruas de Compostela, respirei aquela portuguesíssima forma de estar, cuja ausência alaga em saudades os corações dos portugueses emigrados. Não, os galegos não são espanhóis.

É que no fundo, são os portugueses que são galegos. Calaicos, keltikoi... celtas que se separaram, há tantos séculos, do reino de Leão, retendo a matriz humana e cultural. A Galiza não foi apenas o berço da cultura e da língua portuguesa, foi também pátria de nascimento para Afonso Henriques e pátria adoptiva para Zeca Afonso, que cantou primeiro a Grândola para a margem esquerda do Návia. As nossas afinidades são tais, que entre o idioma português e o galego quase nada diverge. Culturalmente, a única barreira que nos separa é uma prisão chamada Espanha, uma imposição das classes dominantes de Castela sobre toda a península, que entende Portugal como um excepcional e desconfortável acidente histórico ao longo da estrada para o domínio da Península Ibérica.

A brutal ocupação e assimilação castelhana da Galiza quase a matou, propósito que reconhece o cronista de Aragão Zurita em pleno séc. XVI, quando descreve a “doma e castração do Reino da Galiza”. Com efeito, a língua galega foi perseguida e humilhada século após século e obrigada a sobreviver nos bueiros escuros do seu povo miserável. A sua cultura foi relegada para a taberna e para o campo, expurgada da academia e destituída de auto-estima. As nossas irmãs e irmãos galegos, carregam às costas o secular fardo da vergonha de ser quem és a par da trágica (e espúria) obrigação de semelhar o castelhano. Só nos finais do século XIX (quando perde definitivamente a sua independência formal), a Galiza começa um longo caminho dual para se redescobrir e libertar.

Por um lado, a redescoberta cultural obriga à recuperação literária da língua e à sua afirmação e modernização em todos os âmbitos da sociedade. Por outro, a libertação política obriga à construção de um movimento de massas populares de corte secessionista e socialista. Tanto num como noutro vector, os galegos carecem capitalmente de uma aproximação a Portugal. A língua galega, manietada pelo Estado espanhol, estacionou ao longo do século XIX, arcaizando-se ou castelhanizando-se. Mas como sugeria Rodrigues Lapa, ao contrário dos catalães ou dos bascos, os galegos podem servir-se do padrão literário da língua portuguesa, altamente desenvolvido e modernizado, para recuperar a sua própria identidade.

Da mesma forma, a libertação política da Galiza encontra eco na aproximação à sua família do sul. Não só os portugueses construíram uma rede política, cultural e económica internacional baseada na lusofonia, como o Estado Português tem o potencial de espelhar a referência de nação independente dentro da península e fora de Espanha. A isto, acresce o exemplo único do panorama político português, em que, ao contrário do Estado Espanhol, a esquerda não chegou ao século XIX deserdada de organizações revolucionárias de classe poderosas e coerentes.

Se a Galiza precisa de Portugal, também o povo português precisa do galego. Indiferente à CPLP das instituições e profundamente desiludido de um europeísmo bacoco que se provou destrutivo para o povo, Portugal terá que reconfigurar a soberania futura em torno de uma identidade nacional que, neste momento, está em cacos no chão. Para que essa soberania resida no povo e não no capital, esse povo tem que saber primeiro quem é, olhar-se com frontalidade no espelho da História e compreender onde começa e acaba e o que o distingue dos outros. É pois, chegada a hora de regressar à Galiza, que guarda na sua ternura de povo antigo e na sua sensibilidade afinada pelo compasso da natureza, as cofragens da identidade portuguesa.

A resoberanização do povo português nunca estará completa enquanto este não viver em união de facto espiritual com a Galiza. Alexandre Herculano dizia que Portugal é a maior criação do génio galego. Tinha razão. E Portugal precisa desesperadamente de reconvalescença cultural, às mãos carinhosas do artesão que lhe soprou vida nos pulmões, a Galiza.

Ser solidário com o independentismo galego proletário não é apenas um dever da solidariedade internacionalista, é também lutar pela nossa própria liberdade, porque galegos e portugueses somos irmãos siameses que não podem sobreviver separados. Sérgio Godinho perguntava numa canção se pode alguém ser livre se outro alguém não é. E quando esse alguém é o nosso irmão, a resposta é ainda mais fácil. O lugar da esquerda portuguesa é com os independentistas galegos porque o povo galego-português é na verdade um só: a mesma árvore reflectida noutras águas: podemos até falar um português um pouco diferente, mas o nosso coração bate em galego. António Santos – Portugal in “Diário Liberdade”

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