A palavra “abril” tem uma
etimologia obscura. A interpretação popular relaciona-a com o abrir, metáfora
do agromar da vegetação no hemisfério norte nesta altura do ano. Alguns
filólogos relacionam-na com a palavra grega aphós, espuma, também presente no nome
da deusa Afrodita, que, segundo esta etimologia, seria a “nascida da espuma”,
semelhante à Morgana céltica, a “nascida do mar”. Desde 1974 o mês de abril
acrescentou outro significado em Portugal. É o fim da ditadura, as canções do
José Afonso, os cravos, as imagens a preto e branco da multidão a descer a
Calçada do Carmo em Lisboa, é a liberdade, são os capitães, é “a voz do mar
interior de um povo” do poema de Sophia. Tenho ouvido vezes sem conta o relato
da manhã de 25 de abril de 74 na multiplicidade das memórias quotidianas, gente
que soube da revolução quando voltou da escola, gente que estava na guerra em
África, gente que estava emigrada. Nasci galega e, como tantos de nós, cresci
com o lugar comum de Portugal como a Galiza livre. Aprendi a interpretar o 25
de abril como mais um capítulo dessa proximidade de Portugal com a liberdade
tão alonjada para nós. Em certo modo não nos falta razão. Da margem sul da raia
vivo o que na Galiza não é possível, pensar, falar e escrever sem a deformação
obrigatória para a língua e sem o asfixiante controlo ideológico que se usam na
comunidade autónoma. Mas os meus longos anos em Portugal deram-me uma
perspetiva bem mais complexa sobre este estado, a visão da sociedade, da
história vivida nas primeiras pessoas, nas relações, nas famílias, no dia a
dia. Da perspetiva da afinidade cultural e das figuras que sobre ela se
recriaram passei a ver em primeiro plano personagens e episódios sem relação
com a Galiza, Portugal por si e para si.
Nesta minha procura de chaves
para compreender a sociedade portuguesa dei recentemente com uma breve
antologia de artigos sobre o colapso da 1ª República e a origem do Estado Novo
escritos entre 1968 e 1971 por um professor de Sociologia, Hermínio Martins,
exilado então em Londres (*). Apesar de o autor relativizar o rigor da sua
análise ao facto de ele ser parte interessada na oposição ao regime, os artigos
têm a lucidez que a filósofa também exilada María Zambrano atribuía aos
expatriados, a quem chamava “consciência da sua coletividade”. Na análise de
Hermínio Martins ficam vários motivos para a reflexão. De um lado o constructo
da ideologia integralista, a sua falta de base regional e a dependência de
pensadores franceses, e o tradicionalismo como estética dos jovens universitários
de Coimbra, entre eles futuros dirigentes da ditadura, antes que como
ideologia. De outro, a eficácia do sistema repressivo, o que ele denomina a
economia do terror, que longe dos números impactantes da violência física
exercida pelo sistema repressivo do estado espanhol, se serviu do controlo
económico, da extensa rede de informadores, da dependência dos funcionários
públicos, da educação escassa e mal distribuída, da emigração como via para
aliviar as tensões sociais. E ainda um elemento chave para a reflexão dos que
construímos a comunidade galego-portuguesa, o que Hermínio Martins chama
“controle da consciência histórica” como instrumento de doutrinação do regime,
que fez com que atitudes críticas com a historiografia institucional como a de
António Sérgio fossem encaradas como “política de oposição”. O que surpreende
ao meu olhar galego é a sua afirmação de como a interpretação messiânica da
história de Portugal continuou na aposta por que a identidade de Portugal
passasse pela manutenção do império e como a esquerda não soube ou não quis
contestar essa narrativa sobre a identidade portuguesa já no período da guerra
colonial. Para compreender os sentidos da comunidade precisamos dessas outras
leituras sobre o 25 de abril de 1974, contextualizadas nas lutas de libertação
das colónias, leituras afastadas do nosso ângulo galego, ibérico apesar de
tudo. E ainda outro ângulo de análise, o que as decisões dos estados ibéricos
signifiquem para os outros centros de poder na Europa ou na América.
A continuidade cultural
galego-portuguesa mantém a sua vitalidade, ou a perde, dentro de um contexto
social e político, galego, português, mas também espanhol e europeu. Há cem
anos foi a proclamação da república portuguesa, cenário político que dá outro
horizonte de sentidos ao relacionamento cultural daqueles anos ou a discussões
do momento como a literatura sobre a saudade ou as pesquisas sobre a lírica
primitiva e o canto popular. A demanda de modernidade e de espírito cívico
norteia o renovado interesse dos galegos pelo relacionamento com Portugal e é
este desejo de renovação da vida pública o que ativa o imaginário das origens e
a sua continuidade. O exercício de pensar a história e os referentes culturais
está profundamente ligado ao pensar a democracia e é no mínimo belo que este
exercício de autoconhecimento por parte da vanguarda cívica e cultural galega
de há cem anos passasse pelo conhecimento da vida cultural e política de
Portugal. Paralelamente, na atualidade paira uma pergunta sobre o nosso lugar
como coletividade no mundo. Na Galiza é o exercício de imaginar um outro
cenário para a sociedade galega para além da limitação ideológica do
isolacionismo, a visão idealizada de um agro arcádico guardador das essências
pátrias, também a língua, a identificação entre etnia e classe e outras
mitificações. Em Portugal é a discussão sobre o quê fazer com a complexa
herança do império, cenário no que a nossa memória da origem de Portugal tem outro
valor, e também o nosso incansável exercício de leitura do território que
habitamos, leitura poética, leitura económica ou leitura política.
Acontece que na narrativa
histórica a humana necessidade de continuidade e pertença deriva com frequência
em obsessão por replicar antecedentes, hábito que enfraquece a nossa perceção e
ainda mais a nossa ação. Acode-me à memória um poema irlandês contemporâneo que
li numa revista dos estudantes da universidade da Crunha no tempo em que eu
andava por lá. Não lembro o autor, só lembro a história que contava, a do herói
mítico do Ulster Cú Chulainn, e a pergunta que era o motivo repetido do poema:
“Quem és tu para mim, Cú Chulainn?”. Naqueles inícios dos 90 com o conflito do
Ulster e os do estado espanhol bem vivos, evidentes e violentos, a pergunta
doía. A construção da memória em sociedades como as nossas dói, até porque a
militância se apodera da nossa vida pessoal. Alguns anos depois vinha eu para
Portugal, levada de desejo de viver uma vida sem guerra, em liberdade, com a
demanda de uma folha em branco para a minha história. Sonhava eu ter queimado
barcos, embalada de um sonho de ilha possível. Queria a minha aventura, queria
o acaso, queria viver a história de amor que me chamava do sul, só a mim, por
alegria, por prazer, porque estava viva. E assim vim para Portugal, fermosa
para el-rei, como diz a cantiga, precisamente num mês de abril. Como se fosse
possível a inocência, como se nesta Península Ibérica dos meus desvios fosse
possível viver uma história que não tenha uma leitura política. Como se fosse
possível desejar liberdade e não bater contra algum muro. E assim também eu
tive que perguntar-me quem és tu para mim? Quem és tu, mitos, histórias, lutas,
desejos? Quem és tu, meu companheiro do sul? Que história conta a nossa
história? Maria Dovigo – Galiza in “Portal
Galego da Língua”
(*) Hermínio Martins, Classe,
status e poder e outros ensaios sobre o Portugal contemporâneo, Lisboa, ICS:
Imprensa de Ciências Sociais, 2006.
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