I
Escrito em tom coloquial e
próximo ao de um diário íntimo, o romance Sob
as Sombras da Agonia (Lisboa, Chiado Editora, 2016) marca a estréia no
gênero (tardia, mas auspiciosa) do jornalista, contista, cronista e crítico
literário Wil Prado (1952). Saudado com entusiasmo por romancistas experientes
e consagrados, como Raduan Nassar (Prêmio Camões de 2016) e João Almino, o
livro demorou anos para sair à luz e traz flagrantes influências dos anos 70,
época em que o boom da ficção
latino-americana conquistou corações e mentes da geração de futuros escritores
nascida nos anos 50.
Essa constatação é avalizada
pelo jornalista e poeta Salomão Sousa na apresentação que escreveu para este livro
de seu antigo colega de redação no Correio
do Planalto na Brasília daqueles anos, na qual observa que Sob as Sombras da Agonia não se trata de
um romance de formação, “mas de crítica social, descendente de Graciliano Ramos
e de Dostoiévski e de outros mestres que lidam com o questionamento da
realidade”.
O livro sai a uma época
propícia porque denuncia o quanto a alta burguesia é capaz de fazer para manter
o seu status, manipulando a vida e o
futuro dos “humilhados e ofendidos”, na expressão dostoievskiana, desde a
utilização das pessoas humildes como mercadorias até o assalto aos cofres
públicos para utilizar para fins inconfessáveis recursos provenientes dos
impostos pagos pela população e que deveriam ser aplicados na construção de
hospitais, escolas, rodovias e outras obras de infraestrutura (sem
superfaturamento).
Em outras palavras: o romance
de Wil Prado, ao retratar o cotidiano de uma casa de cômodos alugados a
trabalhadores e outsiders de ambos os
sexos, resgata um (sub)mundo que só cresce no Brasil de hoje, em que as ideias
revolucionárias, depois de manipuladas por pelegos e aproveitadores das aspirações
populares, acabaram desacreditadas a ponto de os novos profetas do apocalipse
já anunciarem o fim da luta de classes. Ao que parece, a luta final será entre
aqueles (poucos) que têm boa formação moral e aqueles (muitos) que não têm.
II
Arlindo, funcionário modesto
de um cartório de uma cidade nordestina, solteiro, dado a anseios literários
que o levam a colaborar eventualmente com o jornal local (provavelmente, sem
receber nada, a troco apenas da glória efêmera proporcionada pela letra
impressa), sonha escrever um grande romance e vai anotando numa espécie de
diário o que ouve e vê nas proximidades da pensão em que vive.
Com isso, o leitor começa a
conhecer algumas personagens, como o mascate Targino, que, em meio à venda de
uma e outra bugiganga, faz a chamada doutrinação ideológica, distribuindo
panfletos incendiários, Filomena, a Nega Filó, cozinheira da pensão, Justina, a
mulata despudorada que atrai os homens ao passar com suas partes exuberantes, a
prostituta bondosa Maria das Dores, a mulata Rosalinda e suas “carnes frescas”
e a missionária Madalena, que traz para a ficção brasileira um tipo de
protagonista pouco comum até hoje, como observou com perspicácia Salomão Sousa
no prefácio.
Ou seja, com Madalena, Wil
Prado põe a andar na ficção nacional um tipo que a cada dia mais se vê na
sociedade brasileira, a da mulher evangélica, de boa fé, que pratica a
glossolalia, ou seja, exercita o dom de falar línguas estranhas em meio ao fervor religioso, em substituição às antigas
benzedeiras e mães (e pais) de santo que povoaram a literatura de Jorge Amado
(1912-2001), especialmente. E Wil Prado o faz sem destilar pregação religiosa
nem avançar qualquer juízo moral.
A heroína do livro, porém,
não é esta missionária religiosa, mas Lavínia, moça pobre, que alimenta o sonho
de virar estrela de telenovela ou de teatro, pouco culta, mas que, de repente,
passa a alimentar ideias extravagantes, como a de emancipação feminina,
igualdade de direitos e “toda essa cantilena que arrumara não sei com quem”,
como observa Arlindo, espécie de alter
ego do autor.
Já o bandido da trama é Marconi Gadelha, filho do dono do cartório que
emprega Arlindo, um tipo bon vivant,
que passava temporadas no Rio de Janeiro, mas que sempre voltava bem bronzeado para
usufruir o ócio na pequena cidade e gastava seu tempo iludindo as moças pobres
com falsas promessas em troca de favores sexuais, que, invariavelmente,
acabavam em abortos financiados pela própria “figura asquerosa”, na definição
de Arlindo.
Mas não pára por aqui a
variada fauna de personagens populares de Wil Prado. Para conhecê-la, porém, e
descobrir um Brasil profundo que ainda está presente nesta sociedade da segunda
década do século XXI só mesmo a leitura atenta deste romance, que, com certeza,
será prazerosa.
III
De Sob as Sombras da Agonia, o escritor
Raduan Nassar diz que o romance o tocou, sobretudo, “pela linguagem, por
palavras novas, metáforas bem sacadas, e os empurrões articulando o entrecho”,
acrescentando que a obra arrola no geral gente do povo, “ao lado de uns poucos
salafras da elite, com caracterizações convincentes, inclusive o perfil do
próprio narrador, tolerante e compreensivo, mesmo se crítico não só do que está
aí, mas consigo mesmo em suas idas e vindas”. Nassar reconhece a “força do
romance, marcado dramaticamente por virulentos apelos e frustrações da carne”.
Já
o diplomata João Almino, eleito recentemente para a Academia Brasileira de
Letras, romancista com obras que retratam a dura vida dos excluídos que vivem
em Brasília, observa que o romance de Wil Prado agarra o leitor desde as
primeiras linhas e segue até o final “num crescendo com o voyeurismo do personagem narrador”. E destaca “um bem concebido
resumo de suas memórias de Justina, Lavínia e tantos outros personagens ou
situações nas últimas duas páginas”. Nascido no Rio Grande do Norte, Almino
reconhece no romance a vivência no Nordeste do autor e a influência das
leituras que fez em sua vida.
IV
Wil Prado, nascido em
Teresina (Piauí), terceiro filho de uma família de seis membros, passou os seus
primeiros anos numa casa simples, mas ampla, com terraço e quintal. Moleque que
vivia na rua, acostumou-se a andar em meio à roda de violeiros e cantadores de
feira, à beira do rio Parnaíba e próximo ao Mercado Velho, cenários que ficaram
em sua memória e que marcam boa parte das narrativas curtas que escreveu.
Aos dez anos de idade, acompanhou
a família em sua mudança para o Rio de Janeiro, mais especificamente para a
praia de Copacabana, mas, um ano depois, seus pais, funcionários públicos, seriam
transferidos para Brasília, então uma cidade ainda em formação. Na nova capital
do País, estudou em colégios públicos, mas, segundo diz, nunca passou de aluno
medíocre, “avesso a regras e métodos”.
Aos 21 anos, conseguiu o seu
primeiro emprego, no departamento de artes do jornal Diário de Brasília. Como resultado do convívio com a redação, logo viraria
repórter, sem fazer o curso de Jornalismo. Começou, sim, o curso de Letras, em
1976, na Universidade de Brasília (UnB), mas não o concluiu. Da universidade,
lembra-se da oportunidade que teve de ler em sua biblioteca os clássicos
brasileiros, de Graciliano Ramos (1892-1953) a José Lins do Rego (1901-1957),
de Érico Veríssimo (1905-1975) a Jorge Amado. Segundo o escritor, a literatura
praticada por esses autores, solidária com os desvalidos da terra, influenciaria
definitivamente a sua opção pelos excluídos.
No jornal Correio do Planalto, como repórter
policial, conheceria os dramas da periferia de Brasília, desde aquele tempo violenta
e carente, em contraposição aos bem situados no poder, que costumam viver à
custa das tetas públicas. Na editoria de Polícia, iria conviver com o poeta e
jornalista Salomão Sousa, que assina a apresentação deste livro, com quem
dividia sonhos literários. Quando o Correio
do Planalto fechou as portas, virou free lancer, colaborador de revistas
como a extinta Visão.
Em 1979, tornou-se
funcionário público, passando a trabalhar no Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE), mas continuaria a publicar contos e resenhas de livros em
jornais e revistas de todo o País. Fascinado pela palavra, reconhece
influências de Miguel de Cervantes (1547-1616), Gustave Flaubert (1821-1880), Émile
Zola (1840-1902), Fiódor Dostoivéski (1821-1881), Eça de Queiroz (1845-1900), Louis-Ferdinand
Céline (1894-1961), John Steinbeck (1902-1968) e Ernest Hemingway (1899-1961). Adelto Gonçalves - Brasil
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Sob as Sombras da
Agonia, de Wil Prado. Lisboa: Chiado Editora, 250 págs., R$ 30,00,
2016. E-mail: geral@chiadoeditora.com
Site: www.chiadoeditora.com
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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo (USP), é autor de Os Vira-latas da
Madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra
Selvagem, 2015), Gonzaga, um Poeta do Iluminismo
(Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona
Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil,
2002), Bocage – o Perfil Perdido
(Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio
Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2012), e Direito e Justiça em
Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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