Lusofonia ou a vontade de
ser-se outro
Bem sei que os cáusticos
dias em que vivemos não condescendem bem com paixões fortuitas, que há um
vetusto romantismo na sórdida possibilidade de se confiar num mundo diferente,
quiçá melhor. Nos tempos que correm, ninguém alimenta ideais sem uma pitada de
vergonha ou embandeira princípios e convicções sem automatizar a censura, sem
se deixar corroer por sentimentos de culpa. Na era do pragmatismo e da
imediatez, acreditar – em Deus, no Homem, na universalidade das ideias – é
fraqueza.
Fraco, desde logo, me
confesso. Desenganado pela obnubilação compulsiva dos ideais da democracia, dei
por mim, enfatuado, a crer com ingénua meninice na mais bela das fraternidades,
a que une povos, credos e culturas com mais contrastes do que semelhanças. A
ideia de Lusofonia aquece-me o coração. Desde que o destino me fez arribar a
Macau que nenhum ideal me parece mais digno, ainda que a inteireza do conceito
nem sempre se vislumbre com a nitidez necessária por entre as nuvens de
interesses que conformam as relações entre estados.
Mesmo não sabendo ainda ao
certo o que é ou como poderá vir a ser rentabilizado o capital de esperança a
que se convencionalizou chamar Lusofonia, sei bem como se manifesta: o espanto
que Aureliano Buendía – o impulsivo coronel de “Cem Anos de Solidão” – sentiu
na tarde remota em que o seu pai o levou a conhecer o gelo, senti-o eu sem
reservas e com pueril entusiasmo da primeira vez que me sentei à mesa naquele
que continua a ser para mim o mais fascinante estabelecimento de comidas de
Macau. Do outro lado do balcão, escondidos sob um inelutável manto de rugas,
oitenta e muitos anos de energia (um português adocicado, colorido com
nhonha-nhonha à janela e fula-fula em flor), feijoada e arroz de pato numa
redoma de vidro, velados e embalados por névoas de vapor. A refeição
afigurou-se-me improvável e o espaço uma emanação de uma realidade descontínua,
uma ilha de inverosímil familiaridade e conforto num oceano de estranheza e de
incompreensão. Regresso ao Riquexó com a mesma ingénua devoção com que os
peregrinos respondem à improbabilidade de um milagre e de todas as vezes me
sinto em casa, como que embalado pelo abraço de um lar.
Agrada-me, sem reservas, a
multiplicidade de formas, de rostos e de revelações com que se manifesta o pulsar
da Lusofonia. É um mistério feito gente, feito dança, feito vida. Nas viagens
que fiz, de Timor-Leste à Malásia, passando por destinos impresumíveis como
Thanlyin, Nagasaki ou Batticalao, dei por mim a conversar com interlocutores
improváveis e a esconder com secura o maravilhamento de enfim falar sobre
coisas que realmente importavam, a tentar mascarar com duvidável seriedade a
perplexidade que se sente quando contrastes e semelhanças se fundem em algo
novo, familiar e aliciante numa mesma penada. No coração da inebriante Goa que
por estes dias acolhe os Jogos ditos da Lusofonia, ouvi Aida Menezes de
Bragança, a dama de Chandor (retratada no documentário homónimo de Catarina
Mourão), ressuscitar – num português polido e limpo – memórias de uma juventude
há muito dilacerada, dos dias em que pelos corredores da enormíssima Casa dos
Bragança esvoaçavam crianças a perder de conta e se escutavam ladainhas e
tabuadas por detrás do arcabouço de janelas envidraçadas com painéis de
madre-pérola.
Não sei ao certo o que é a
Lusofonia mas sei como se manifesta: irrompe como uma vaga absurda de orgulho.
Orgulho inexplicável que é também maravilhamento, vontade de abraçar o outro,
de compreender as suas motivações, de entender a sórdida resistência ao fluir
do tempo e o apego a influências culturais alienígenas, desfasadas das
concretizações políticas e sociais que hoje vigoram. É por ser fruto de um
conjunto de improbabilidades que a Lusofonia está condenada se os povos que se
acomodam no seu regaço não souberem ultrapassar a redutora formalidade do
conceito que a define. Mais do que o conjunto das comunidades de língua
portuguesa no mundo, a Lusofonia é o cadilho de comunidades que têm o português
como língua comum e uma e outra acepção não são necessariamente a mesma coisa.
Para os falantes da língua de Camões a Lusofonia deve ser entendida sobretudo
como um fértil campo de possibilidades. Deve ser um interface de intercâmbio
cultural que sirva de plataforma de difusão cultural e artística aos países e
territórios que a integram, mas também uma frente unida de batalha na luta pela
preservação da independência e da genuinidade cultural dos povos que se dizem e
sentem lusófonos. Mais do que o fomento do português, a Lusofonia deve ter
também capacidade para se transformar num instrumento de projecção do
cantonense e do concanim face à cada vez mais agressiva política de
uniformização linguística embandeirada por Pequim e por Nova Deli. Deve
afirmar-se como uma montra capaz de exponenciar a história e as tradições dos fula
e dos papel da Guiné Bissau, dos maubere de Timor-Leste ou dos ovimbundu de
Angola. Uma tribuna para o conhecimento de homens e de deuses.
Eu, que não sei ao certo o
que a Lusofonia é, sei bem aquilo que ela não é. Não é a visão tacanha e
enviesada do mundo que manifestou Artur Lopes há meia dúzia de dias, quando
assumiu que o português – mais do que interface de conhecimento – se deve
afirmar como instrumento de subjugação. Por muito bem versado na história da
Expansão que o chefe da missão de Portugal em Goa se arrogue ser, não teve
grandeza de espírito suficiente para perceber que não foi o comércio, a
pimenta, a prata e ouro que engrandeceram a presença de Portugal e dos
portugueses de antanho na Ásia. Foi – isso sim – a sórdida vontade de ser-se outro.
Com portugueses como Artur Lopes, quem os pode censurar? Marco Carvalho – Macau in “Hoje Macau”
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