O linguista moçambicano Gregório Firmino
discute os limites da lusofonia
Gregório Firmino |
O linguista moçambicano Gregório Firmino,
diretor da Faculdade de Ciências Sociais e Letras da Universidade Eduardo
Mondlane, a principal universidade pública de Moçambique, não sabe se sua
primeira língua foi o português. A dificuldade é comum no país do sudeste da
África, que tem a língua portuguesa como oficial, embora só 39% da população
seja lusófona, e a maioria viva o plurilinguismo.
De colonização tão antiga quanto a do Brasil,
o país só se livrou da invasão portuguesa em 1975, quando a Frente de
Libertação de Moçambique (Frelimo), movimento que venceu a luta armada, chegou
ao poder. "Moçambique independente produziu mais falantes do português do
que Moçambique colonial", diz Gregório, que se especializou na relação
entre o português e os idiomas locais. À Língua falou sobre a complexidade
linguística do país e o projeto de nação que a Frelimo concebeu, fazendo o país
adotar o idioma tanto para promover integração social quanto para atuar no
cenário internacional. Mas o conflito interno perdura. No fim de 2013, a
Resistência Nacional Moçambicana (Renamo) decidiu boicotar as eleições
municipais para sabotar a lei eleitoral, que favoreceria a Frelimo, partido do
presidente Armando Guebuza e no poder na maioria das cidades.
Qual a
primeira língua que aprendeu?
Na verdade não sei. É muito difícil para
alguns moçambicanos dizer qual a sua primeira língua, pois estamos expostos a
muitas. A de casa, que, se calhar, foi a primeira que ouvi (mas não tenho
certeza!), é uma bantu, gitonga, uma das muitas do país. Meus pais vivem numa
região onde também se fala outra língua bantu, então, quando estava com meus
amigos, tinha de falar uma língua diferente. E ao longo da vida fui aprendendo
outras.
Quantas
línguas há em Moçambique hoje?
Esta pergunta, para mim, como sociolinguista,
não é respondível. As fronteiras linguísticas não se estabelecem dessa maneira.
Claro que depende sempre de quem as estabelece. Mas, numa sistematização feita
do recenseamento de 1980, foram identificadas 24 categorias. Repare, não digo
línguas, digo categorias linguísticas. São 24, incluindo o português. Mas o
número pode chegar a 100 ou a 5, dependendo de como se classifica.
Como caminha
o processo de descrição das línguas?
Quase todas estão descritas. O problema da
descrição é que ela não tem fim, até porque as línguas se modificam. Está
crescendo o conhecimento das práticas linguísticas. O fato de eu saber que
"essa língua é assim e assim" não é nada, mas sim "como essa
língua é usada?", "qual é sua influência na sociedade?"; isso é
muito importante.
Quais
os problemas de a maioria da população não ter o português como 1a
língua?
Não gosto de dizer que há problemas. Há uma
situação linguística que é preciso encarar, como há em outros países. A
interação social é feita pela língua, mas ela não serve só para se comunicar.
Pressupomos que nós temos de ser iguais, mas não. O que se passa é que os
problemas que nós precisamos discutir têm a ver com o fato de olharmos para
eles com a visão do funcionamento do Estado. Moçambique é plurilíngue, as
pessoas falam várias línguas; há várias bolsas de línguas, e mesmo quando
dizemos "plurilíngue" estamos a simplificar. Há pessoas que falam duas
línguas bantu, outras falam três, quatro.
Outras falam uma bantu e o português, mas
essa bantu não é a mesma que a dos outros que falam português. Posso falar a
língua A mais o português, outro falar a língua C mais o português. É uma
situação muito complexa. Do ponto de vista do Estado é importante encontrar o
fator comum, sobretudo para ativar nas pessoas a consciência de que estão num
mesmo Estado. É verdade que há muitas instâncias contra, o português não é a
solução de todos os problemas. É uma opção estratégica, da qual as pessoas têm
consciência.
Como
foi a adesão ao português? Ele era a língua do inimigo, não?
Foi um processo político, de alguma forma
normal - considerando a configuração do movimento nacionalista.
Sim,
pois foi a língua adotada pela Frelimo, certo?
Era a língua do movimento, a que poderia
unir. O nome já diz, era uma "frente", a união de todos, desde que
tivessem uma posição anticolonial. A Frelimo congregava diferentes tendências,
então elegemos um catalisador comum, e a língua portuguesa serviu. Mas isso
confunde as pessoas: não quer dizer que todos falassem português.
Não?
Pelo contrário: nomes influentes no movimento
falavam inglês. Eduardo Mondlane - que deu nome à universidade - foi o primeiro
líder do movimento nacionalista, e foi escolarizado num mundo em inglês. Na
África do Sul, nos EUA; viveu muito fora de Moçambique. A vida dele, nos
momentos cruciais, ele a fez em inglês. Muitos que aderiram ao movimento não
falavam português. Pois uma coisa é as pessoas falarem a língua; outra é
assumi-la como símbolo do que se está a fazer. Sem o português, o país não
seria o que é. Não digo que não haveria Moçambique - mas não com a configuração
social, econômica e política que conhecemos.
No Brasil, houve a imposição do idioma. Há
essa percepção em Moçambique?
Essa ideia de que a escolha do português foi
neocolonial perpassa alguns círculos intelectuais, mas não há como associar a
Frelimo ao movimento neocolonial. Ela é um movimento nacionalista,
anticolonial, dos mais consequentes que houve em África.
Aqui se
questiona o "abaixo os tribalismos", para unir todos em uma nação
forjada e, com isso, apagar as diferenças.
Como você vai apagar? A questão em causa era
executar um projeto nacional. E mesmo agora em Moçambique, muitos não falam
português.
Mas toda gente o assume como um símbolo.
Tanto que o português, além de servir como instrumento de comunicação, é como
se fosse uma bandeira, um hino. Posso não gostar do hino; posso até não conhecer
a letra e não cantá-lo, mas representa todos nós. Os estudos que há em
Moçambique enfatizam muito a mudança linguística no lado da estrutura da
língua. No tempo colonial, a língua não
era falada da mesma forma que em Portugal nem pelos próprios portugueses que
estavam em Moçambique. Mas o que fez a língua ser moçambicana foi o fato de ela
ter sido assumida pelos moçambicanos como símbolo da unidade nacional - a
mudança simbólica precede, tem mais relevância que a estrutural. Porque esta é
normal; uma língua está sempre em mudança! O português está a sofrer um
processo de nativização; que se associa a novos valores sóciossimbólicos e
traços linguísticos. Esta "nativização" tem mais a ver com o novo uso
social do que com a diferenciação da língua em si. Ao português em Moçambique é
conferido um caráter singular pela ideologia que motiva os seus usos e não só
por suas inovações linguísticas.
Como
avalia as contribuições do português moçambicano?
Há várias contribuições estruturais. A coisa
mais óbvia é lexical. Há formas sintáticas, fonológicas, fonético-fonológicas,
morfológicas, que foram mostrando outras possibilidades de a língua existir.
Alguma
delas chegou a Portugal ou ao Brasil?
Algumas. A mudança linguística, para os
linguistas, segue um processo natural. Alguns fenômenos da mudança linguística
têm a ver com a forma como a língua funciona, ou como nosso cérebro funciona.
Eu, você, alguém que está em Portugal, temos o mesmo cérebro, portanto
partilhamos aquilo que chamamos de "universais linguísticos", algumas
tendências naturais da língua. Portanto alguns fenômenos que nós vemos em
Moçambique poderiam ocorrer em outros locais. Agora, pode ser que estes
fenômenos sejam acelerados pelo contexto específico de Moçambique. Por exemplo,
o fato de muitos moçambicanos terem uma língua bantu como 1a língua, com um
conjunto de estruturas diversas, facilita o surgimento de certos fenômenos -
mas alguns deles que ocorrem aqui no Brasil podem ocorrer em Portugal. A língua
bantu tem certas estruturas, que podem ser projetadas ao português, e ficam
mais salientes em Moçambique do que no Brasil ou em Portugal.
Por
exemplo?
O aspecto marcante é a gente dizer "essa
língua é nossa, não devemos nada a você". Os portugueses querem cobrar o
uso do português, como se fosse um favor que nos fizeram. Não, eles nos
deveriam muito mais! Mas a língua portuguesa deve a quem? Eles devem ao
italiano? Daqui a mil anos, vamos chamar de português aquilo que se fala no
Brasil? Aquilo que se fala em Moçambique? Não sei. Mas a língua é nossa. E não
só é nossa, mas é tão nossa quanto os outros dizem que é deles. Não devemos
favor a ninguém, não venham nos dar lições, fazemos o que queremos. E amanhã,
se nós dissermos "já não queremos" - como Estado - e adotarmos, como
política linguística, alguma outra opção estratégica, qual o problema?
Quais
os maiores desafios da linguística em Moçambique?
O desafio, que se estende para fora da
África, é o de trabalhar sem preconceitos. Assumir uma visão
linguístico-científica para conhecer as coisas de uma forma científica - porque
muitas vezes os cientistas querem descobrir aquilo em que já pensaram, que acham
que já descobriram, e não é bem assim. Penso que muito do que se faz na África
tem esse defeito de já ter um pensamento preconcebido. Da mesma forma como
falamos em "África". É errado. Devemos falar de
"Áfricas"... As pessoas querem soluções gerais, "a mesma fórmula
que se aplica a tantos contextos". Mas a questão é olhar cada caso sem
preconceito, e assumir que África é um continente; os países africanos sempre
tiveram dinâmicas, não são produtos acabados. Nesse dinamismo, a interação com
elementos crioulos, que surgem do contato entre línguas e povos, sempre esteve
presente - de forma positiva ou negativa. Antes de chegarem os colonos
europeus, já havia colonização em África - dos árabes. Havia colonização
intra-africana também - grupos que invadiram outros grupos, e ocuparam outros,
mataram etc. Sempre houve isso e isso sempre teve consequências sociais. As
pessoas olham para África como se ela tivesse só uma colonização, como se a
história de Moçambique começasse quando os portugueses chegaram. Aquilo foi uma
etapa - houve e vai haver outras. Jacqueline
Kaczorowski – Brasil in “Revista Língua Portuguesa”
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