Pepe Mujica: "Nós, socialistas, temos
que formar nossa gente"
"A formação universitária contemporânea
está embebida de capitalismo por toda parte. Nós, socialistas, temos que formar
nossa gente".
Carta
Maior: Como o senhor conheceu Darcy Ribeiro e como se tornaram amigos? Tinham
ideias políticas parecidas?
Mujica: Eram tempos já distantes, do golpe
militar no Brasil. No Uruguai se refugiaram alguns notórios perseguidos
políticos e lutadores sociais brasileiros e nós compúnhamos um grupo de rapazes
jovens que, solidariamente, trabalhávamos de correio, para trâmites de
imigração, e viajávamos continuamente para Porto Alegre, São Paulo e Rio.
Numa dessas idas, em algum apartamento,
conheci Darcy. Eu o observava, na visão de homem jovem que eu era, como uma
espécie de maestro, daqueles que nos iluminava o caminho. Havia uma distância
intelectual muito marcada entre nós e Darcy. Afinal, não éramos mais que um
pequeno punhado de jovens carteiros. De qualquer modo, penso que não foi em
vão. Conheci muita gente do pensamento brasileiro e, com o passar do tempo, encontrei
alguns por aqui, outros por lá, outros que já não estão.
A
América Latina está imersa em um processo de mudanças importantes em muitos de
seus países. O que pensaria Darcy Ribeiro da América Latina que temos
atualmente?
Eu penso que, por um lado, ele teria uma
espécie de grata surpresa e seguramente estaria comprometido, ajudando. Mas
seguramente estaria criticando também. Ineludivelmente, pela forma libertária e
aberta de sua maneira de pensar, pelo fervoroso idealismo carregava. E eu acho
que ele reforçou isso em seus trabalhos de Antropologia, conhecendo os povos
primitivos. Mas não tenho dúvida de que estaria apoiando; mas não apoiando
incondicionalmente, sim numa atitude crítica.
Você
fala de apoio e de crítica. O que teria a América Latina atual que aprender do
pensamento, da luta e da obra de Darcy Ribeiro?
Eu acho que existem coisas que são
permanentes: sua devoção aos povos primitivos, sua devoção aos costumes, a
busca nos povos primitivos das mais profundas chaves da conduta humana. Acho
que isso é uma parte moderna, que será incorporada.
Existem muitos antropólogos que estudam a
ciência do homem e estão muito atrasados com respeito a outros. E nesta
América, acho que Darci nos deixou um capital, deste ponto de vista, que é pelo
menos um ponto de partida. Não é o fundamentalismo de defesa dos povos
aborígenes como quem defende uma coisa que deve ser conservada, como quem
conserva animais raros, mas eu entendo que os esforços de Darcy têm que ver com
encontrar as chaves da conduta humana fora da civilização: é o que temos no
disco rígido da espécie. Por momentos, pelo menos, me dá essa impressão.
A
experiência boliviana, com um presidente indígena à frente e com todas as
contradições que está tendo esse processo, teria lhe interessado, sem dúvida,
muitíssimo.
Sem dúvida. Ele estaria em uma espécie de
oficina permanente, revisando algumas de suas teses, gerando outras.
Seguramente ele estaria cultivando um pensamento fermental. E eu diria,
procurando iluminar-nos, no caminho da teoria, neste mundo de esquerdas
potentes como as que se movem na América do Sul, mas que têm uma dívida muito
profunda em matéria de teoria.
Ribeiro estava firmemente convencido das
possibilidades emancipadoras da educação. No Brasil, tentou construir uma universidade
modelo para uma nova sociedade mais justa e democrática. Você acha que a
educação ainda tem esse poder de mudar o mundo, apesar de que ele está cada vez
mais regido pelo dinheiro sem pátria?
Acho que Darcy era um prisioneiro de sua
própria fé, de seu próprio entusiasmo. Não tenho dúvida de que a educação é um
componente imprescindível para uma sociedade melhor, mas com isso não chega. A
formação universitária de caráter contemporâneo sofre e, em grande medida, está
embebida de capitalismo por todos os lados, e tende a reproduzir quadros
intelectuais, acadêmicos, que afinal acabam sendo funcionais para o próprio
capitalismo. Não gera necessariamente quadros para uma sociedade diferente ou
para que lutem por uma sociedade diferente. Isto acho que não se podia ver na
época de Darcy.
Mas vou resumir: nós, socialistas, temos que
fundar nossas próprias universidades e formar nossa gente e não mandá-las para
que o capitalismo as forme e pretender depois criar socialismo com essa
intelectualidade. Sei que é muito forte, mas acho que é um de nossos deveres.
Mas isto eu digo depois de ler o jornal de segunda-feira, digo depois de ter
vivido, antes não pensava assim.
Porque
você considera que a cultura tem um papel relevante nas mudanças sociais…
Tremendo!
…as
mudanças das forças produtivas em nível político não são suficientes se não há
uma mudança cultural na sociedade.
Conhecimento e cultura, as duas coisas. Mas
embebidos de outros valores. E uma universidade que trata de capacitar
profissionais que estão apressados por formar-se para incorporar-se ao grande
mercado de trabalho, o que não parece o mais adequado, em termo genérico sempre
vai existir... mas bem, em todo caso isto é após o tempo de Darcy.
Provavelmente se ele estivesse vivo estaríamos discutindo isto.
Seria
muito bom… Como Darcy, que era um antropólogo, você mostra também inquietude
pela crise ambiental. Fez referências importantes ao tema na abertura da
Assembleia da ONU este ano. Como o tema ambiental muda a concepção de luta
socialista no mundo atual em relação com a visão, talvez mais romântica, que se
tinha quando você e Darcy eram jovens militantes.
A tese central que sustento é que, no fundo,
a crise ambiental é uma consequência, não uma causa. Que, na verdade, os
problemas que temos no mundo atual são de caráter político. E isso se manifesta
nessa tendência de destroçar a natureza.
E por que político? É político e é
sociológico porque remontamos a uma cultura que está baseada na acumulação
permanente e em uma civilização que propende ao “usa e descarta”, porque o eixo
fundamental dessa civilização é apropriar-se do tempo da vida das pessoas para transformá-lo
em uma acumulação. Então, é um problema político. O problema do meio ambiente é
consequência do outro. Quando dizemos que “para viver como um americano médio,
são necessários três planetas” é porque partimos de que esse americano médio
desperdiça, joga fora e está submetido a um abuso de consumo de coisas da
natureza que não são imprescindíveis para viver.
Portanto, quando digo político, me refiro à
luta por uma cultura nova. Isso significa cultivar a sobriedade no viver,
cultivar a durabilidade das cosas, a utilidade, a conservação, a recuperação, a
reciclagem, mas fundamentalmente viver aliviado de bagagens. Não sujeitar a
vida a um consumo desenfreado, permanente. E não é uma apologia à pobreza, é
uma apologia à liberdade, ter tempo para viver e não perder o tempo em acumular
coisas inúteis. O problema é que não se pode conceber uma sociedade melhor se
ela não se supera culturalmente.
Por
último, uma lembrança, a lembrança mais forte que você conserva da relação que
teve com Darcy Ribeiro.
O que mais me impressionou é a fé cega que
esse bom homem tinha na educação como alavanca principal para ordenar o mundo.
Ele era um apaixonado pela educação. Era uma espécie de professor predicador,
não apenas do conhecimento, mas da necessidade de semear conhecimento.
Nos faz
falta?
Sim, claro que nos faz falta, muitíssima
falta. Um apaixonado pela educação!
In “Carta
Maior” – Brasil
"Sou um homem de causas. Vivi sempre
pregando, lutando, como um cruzado, pelas causas que comovem. Elas são muitas,
demais: a salvação dos índios, a escolarização das crianças, a reforma
agrária..." Darcy Ribeiro
Darcy Ribeiro |
Darcy Ribeiro – perfil no sítio oficial da
Academia Brasileira de Letras
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