O processo de reabilitaçom do galego iniciado
nos oitenta, quando a Galiza estreava autonomia, pretende ancorar o idioma no
espaço normativo internacional que lhe é próprio depurando-o dos vínculos
ortográficos que o subordinam ao castelhano e das artificiosas próteses
–neologismos arbitrários, decalques do espanhol– que o desfiguram e
esterilizam.
O processo nom defronta dificuldades de
carácter técnico, nunca melhores filólogos houvo no país, facto que nom impede
prolongar o regime de bloqueio decretado por decisom administrativa inapelável.
A situaçom lembra um bocadinho o conflito do celibato imposto aos padre-curas:
Roma pontifica, assunto concluído. A autoridade competente decretou harmonia
linguística indefinida sem direito a réplica. O bloqueio do processo de
adaptaçom do galego ao seu standard internacional é tanto mais lamentável
quanto que o galego institucionalmente consagrado tem atingido um elevado grau
de madureza que o habilitaria para progredir facilmente na direçom apontada. A
obra de filólogos tam reconhecidos como Freixeiro Mato e mesmo a discretíssima
política restauradora exercitada polo poder glotopolítico assi o demonstra.
Hoje em dia qualquer concorrente a umha prova oficial de aptitude linguística
pode já utilizar sem temor palavras como “libraría”, “consellaría” e mesmo
“porén” punidas severamente até há pouco por uso ilegal de substáncias
linguísticas proibidas.
O tímido relaxamento das funçons de
fiscalizaçom lexical e crescente descrédito dos alardes de autoritarismo
linguístico permitem perceber mesmo algum tímido eco procedente das esferas do
poder sobre a conveniência de submeter a reconsideraçom a clausura decretada
sobre o debate de reabilitaçom do galego. Nom será preciso lembrar que umha
hipotética reabertura do diálogo contaria com interlocutores altamente
qualificados nas fileiras reintegracionistas. O histórico trabalho da Comissom
Lingüística da AGAL tem atingido um inegável grau de madureza como pode
comprovar qualquer um sem mais que se debruçar nas últimas publicaçons da
Comissom[1]. A conveniência de recuperar o diálogo normativo dista
de poder ser despachada como assunto extemporáneo que a ninguém importa –
típico sofisma de todo argumentário imobilista – como prova a listagem de
17.000 assinaturas cívicas em prol da Iniciativa Legislativa Popular
Paz-Andrade. Cabe perguntar daquela que dogma da teologia linguística vigente
permite fundamentar a pena de celibato obrigatório imposta ao galego. Contodo,
o processo de fusom fria galaico-portuguesa avança. Nos primeiros dias deste
mês de novembro o Parlamento da Galiza recebia oficialmente o Diretor Executivo
do Instituto Internacional da Língua Portuguesa, Gilvan Müller de Oliveira, com
presença de representantes do CCG. Um sintoma, ou talvez um prenúncio 'for the
times they are a-changin’.
O doloroso processo de confrontaçom entre os
discursos reintegracionista e isolacionista produziu – além da consabida
esteira de ressentimentos que toda ditadura sementa – umha deplorável
agudizaçom das posiçons mais relutantes ao diálogo e à transaçom. A atitude da
presidência atual da RAG, como a da precedente, ilustram bem a desdenhosa
recusa ao dialogo praticada por umha instituiçom que deveria cultivar umha
atitude de abertura e diálogo pola sua qualidade de entidade nacional. Um dos
argumentos implícitos de tal política é a insidiosa ameaça do inimigo interno e
a consequente necessidade de prolongar o decretado estado de sítio. O inimigo
interno: argumento inevitável dos regimes autoritários.
A expulsom irrevocável do discurso
reintegracionista da reflexom sobre o futuro do idioma contribuiu a exacerbar
as posiçons em conflito e a reprimir as possibilidades de transaçom. No campo
reintegracionista, a supressom do incipiente debate dos oitenta alimentou um
progressivo desinteresse polas doenças do galego vivo e a simultánea
identificaçom com a norma portuguesa. Um passo mais na mesma direçom é a opçom
pola norma mais discrepante da tradiçom ortográfica do galego, a do acordo
ortográfico de 1990. Falemos galego e escrevamos português padronizado pode
resumir o conteúdo desta deriva, tam legítima do ponto de vista glotoestratégico
como estéril na estratégia de reabilitaçom do formato e o repertório de usos do
galego. O fundo do problema estriba, a meu ver, em que só ostentam virtualidade
transformadora as propostas suscetíveis de generalizaçom enquanto as de
propensom minoritária veem severamente travada a sua potência socializadora. Um
oneroso tributo político. Prova desta dialética socializadora som as evidentes
resistências que suscita a adoçom da norma reintegracionista polo movimento
nacionalista, mesmo no ámbito da comunicaçom com os adeptos se excetuamos casos
como o de Novas da Galiza. A razom é óbvia: a recetividade social é um
imperativo regulador da atividade política, a chave da hegemonia social. Em
assuntos transcendentais como o pam e a palavra é preceptivo arrecadar os mais
amplos consensos. Teses mais ou menos discutíveis em foros académicos podem
resultar incompreensíveis na ágora pública. O mapa da rota deve evitar sempre a
linha do horizonte.
O lusismo como conceito implicitamente
admitido tem algo de estranho para nós. O nexo simbólico que nos une a Portugal
afinca no nosso imaginário em raiz galaico-minhota, castreja se assim quigermos
denominá-la. Podemos reconhecer-nos na citánia de Briteiros com a sua Pedra
Formosa, tam galaicas como as de Santa Tegra, Viladonga ou Lás.
Identificarmo-nos com o imaginário luso-alentejano, nascido da poética de Silio
Itálico, é outra cousa, mesmo que esteja ungida pola épica camoniana. Toda
tradiçom irradia a sua aura, como sabia Walter Benjamin, e, na nossa exuberante
ramagem simbólica, a aura lusitánica é um bocadinho enigmática, devemos
reconhecer. Portugal mantém, aliás, um teimoso olhar autorreferencial no qual a
Galiza é um ponto cego e o lusismo a aura que reverbera a sua particular
saudade do Quinto Império.
No conflito latente que se livra em torno ao
galego há cousas bem mais prementes, com certeza, do que os evanescentes
dissensos simbólicos. A radical fragmentaçom do romance que compartimos mundo
afora, por exemplo. O muito celebrado romancista português Valter Hugo Mãe,
nado em Angola, declarado admirador do Brasil e português de cidadania e
exercício afirmava há pouco: “Em Portugal, fala-se uma língua mais pudica,
ortodoxa. Angola é uma escangalhação. Misturam com dialeto e então vão
esquecendo a língua. No Brasil, o uso da língua é mais informal. Inventa-se uma
palavra hoje e amanhã ela já está na televisão para todo mundo falar”. Esta
língua plural, pudica e ortodoxa, escangalhada e incessante, é a nossa própria
a título de portugueses arcaicos que somos – trasmontano-minhotos, bracarenses
– por história e raiz. A outra raiz nossa é a compostelana.
A desestima mais radical do conceito de
lusismo parte da sua condiçom de significante vazio ou altamente controverso no
universo lusófono. O lusismo pode interpretar-se nesta perspetiva como um
construto simbólico do patriotismo português com escasso eco mundo afora. Umha
espécie de hispanidade em versom portuguesa, mesmo afetada por achaques de
velhice mais severos que a sua decrépita versom espanhola, se acreditamos no mestre
Eduardo Lourenço. O taciturno pensador português é um guia inescusável em
qualquer viagem iniciática ao controverso conceito[2]. Nom cederemos
à tentaçom de resumir as suas lúcidas reflexons sobre o mal-estar da
consciência coletiva portuguesa e a sua compensaçom simbólica no graal lusista.
Os mestres ham de ser lidos.
Galiza partilha com Portugal a sua raiz
identitária mais íntima que é o próprio idioma. A naçom galega orgulha-se de
pertencer ao viçoso continente das lusofonias que nos ampara do minguado
provincianismo que por aqui campa. Talvez seja chegada a hora de retomar o
discurso reabilitador do nosso idioma para inseri-lo na cepa forte das
lusofonias. Se assi for, talvez convinhesse lembrar que inserir gomo adventício
em cepa velha requer destreza. Aceitemos o desafio, a arte de enxertar é o
ofício original da agálica legiom contra a hipótese da sua hibernaçom
permanente, da prática da eutanásia passiva. Joám Facal – Galiza in “Portal Galego da Língua”
NOTAS A RODAPÉ
[1] CL-AGAL (2012): O Modelo Lexical Galego.
Fundamentos da Codificaçom Lexical do Galego-Português da Galiza. Através
Editora. Santiago de Compostela.
[2] Eduardo Lourenço (2004): “Imagem e
miragem da lusofonia” em A nau de Ícaro, Gradiva, Lisboa.
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