Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Lusotopias

O processo de reabilitaçom do galego iniciado nos oitenta, quando a Galiza estreava autonomia, pretende ancorar o idioma no espaço normativo internacional que lhe é próprio depurando-o dos vínculos ortográficos que o subordinam ao castelhano e das artificiosas próteses –neologismos arbitrários, decalques do espanhol– que o desfiguram e esterilizam.

O processo nom defronta dificuldades de carácter técnico, nunca melhores filólogos houvo no país, facto que nom impede prolongar o regime de bloqueio decretado por decisom administrativa inapelável. A situaçom lembra um bocadinho o conflito do celibato imposto aos padre-curas: Roma pontifica, assunto concluído. A autoridade competente decretou harmonia linguística indefinida sem direito a réplica. O bloqueio do processo de adaptaçom do galego ao seu standard internacional é tanto mais lamentável quanto que o galego institucionalmente consagrado tem atingido um elevado grau de madureza que o habilitaria para progredir facilmente na direçom apontada. A obra de filólogos tam reconhecidos como Freixeiro Mato e mesmo a discretíssima política restauradora exercitada polo poder glotopolítico assi o demonstra. Hoje em dia qualquer concorrente a umha prova oficial de aptitude linguística pode já utilizar sem temor palavras como “libraría”, “consellaría” e mesmo “porén” punidas severamente até há pouco por uso ilegal de substáncias linguísticas proibidas.

O tímido relaxamento das funçons de fiscalizaçom lexical e crescente descrédito dos alardes de autoritarismo linguístico permitem perceber mesmo algum tímido eco procedente das esferas do poder sobre a conveniência de submeter a reconsideraçom a clausura decretada sobre o debate de reabilitaçom do galego. Nom será preciso lembrar que umha hipotética reabertura do diálogo contaria com interlocutores altamente qualificados nas fileiras reintegracionistas. O histórico trabalho da Comissom Lingüística da AGAL tem atingido um inegável grau de madureza como pode comprovar qualquer um sem mais que se debruçar nas últimas publicaçons da Comissom[1]. A conveniência de recuperar o diálogo normativo dista de poder ser despachada como assunto extemporáneo que a ninguém importa – típico sofisma de todo argumentário imobilista – como prova a listagem de 17.000 assinaturas cívicas em prol da Iniciativa Legislativa Popular Paz-Andrade. Cabe perguntar daquela que dogma da teologia linguística vigente permite fundamentar a pena de celibato obrigatório imposta ao galego. Contodo, o processo de fusom fria galaico-portuguesa avança. Nos primeiros dias deste mês de novembro o Parlamento da Galiza recebia oficialmente o Diretor Executivo do Instituto Internacional da Língua Portuguesa, Gilvan Müller de Oliveira, com presença de representantes do CCG. Um sintoma, ou talvez um prenúncio 'for the times they are a-changin’.

O doloroso processo de confrontaçom entre os discursos reintegracionista e isolacionista produziu – além da consabida esteira de ressentimentos que toda ditadura sementa – umha deplorável agudizaçom das posiçons mais relutantes ao diálogo e à transaçom. A atitude da presidência atual da RAG, como a da precedente, ilustram bem a desdenhosa recusa ao dialogo praticada por umha instituiçom que deveria cultivar umha atitude de abertura e diálogo pola sua qualidade de entidade nacional. Um dos argumentos implícitos de tal política é a insidiosa ameaça do inimigo interno e a consequente necessidade de prolongar o decretado estado de sítio. O inimigo interno: argumento inevitável dos regimes autoritários.

A expulsom irrevocável do discurso reintegracionista da reflexom sobre o futuro do idioma contribuiu a exacerbar as posiçons em conflito e a reprimir as possibilidades de transaçom. No campo reintegracionista, a supressom do incipiente debate dos oitenta alimentou um progressivo desinteresse polas doenças do galego vivo e a simultánea identificaçom com a norma portuguesa. Um passo mais na mesma direçom é a opçom pola norma mais discrepante da tradiçom ortográfica do galego, a do acordo ortográfico de 1990. Falemos galego e escrevamos português padronizado pode resumir o conteúdo desta deriva, tam legítima do ponto de vista glotoestratégico como estéril na estratégia de reabilitaçom do formato e o repertório de usos do galego. O fundo do problema estriba, a meu ver, em que só ostentam virtualidade transformadora as propostas suscetíveis de generalizaçom enquanto as de propensom minoritária veem severamente travada a sua potência socializadora. Um oneroso tributo político. Prova desta dialética socializadora som as evidentes resistências que suscita a adoçom da norma reintegracionista polo movimento nacionalista, mesmo no ámbito da comunicaçom com os adeptos se excetuamos casos como o de Novas da Galiza. A razom é óbvia: a recetividade social é um imperativo regulador da atividade política, a chave da hegemonia social. Em assuntos transcendentais como o pam e a palavra é preceptivo arrecadar os mais amplos consensos. Teses mais ou menos discutíveis em foros académicos podem resultar incompreensíveis na ágora pública. O mapa da rota deve evitar sempre a linha do horizonte.

O lusismo como conceito implicitamente admitido tem algo de estranho para nós. O nexo simbólico que nos une a Portugal afinca no nosso imaginário em raiz galaico-minhota, castreja se assim quigermos denominá-la. Podemos reconhecer-nos na citánia de Briteiros com a sua Pedra Formosa, tam galaicas como as de Santa Tegra, Viladonga ou Lás. Identificarmo-nos com o imaginário luso-alentejano, nascido da poética de Silio Itálico, é outra cousa, mesmo que esteja ungida pola épica camoniana. Toda tradiçom irradia a sua aura, como sabia Walter Benjamin, e, na nossa exuberante ramagem simbólica, a aura lusitánica é um bocadinho enigmática, devemos reconhecer. Portugal mantém, aliás, um teimoso olhar autorreferencial no qual a Galiza é um ponto cego e o lusismo a aura que reverbera a sua particular saudade do Quinto Império.

No conflito latente que se livra em torno ao galego há cousas bem mais prementes, com certeza, do que os evanescentes dissensos simbólicos. A radical fragmentaçom do romance que compartimos mundo afora, por exemplo. O muito celebrado romancista português Valter Hugo Mãe, nado em Angola, declarado admirador do Brasil e português de cidadania e exercício afirmava há pouco: “Em Portugal, fala-se uma língua mais pudica, ortodoxa. Angola é uma escangalhação. Misturam com dialeto e então vão esquecendo a língua. No Brasil, o uso da língua é mais informal. Inventa-se uma palavra hoje e amanhã ela já está na televisão para todo mundo falar”. Esta língua plural, pudica e ortodoxa, escangalhada e incessante, é a nossa própria a título de portugueses arcaicos que somos – trasmontano-minhotos, bracarenses – por história e raiz. A outra raiz nossa é a compostelana.

A desestima mais radical do conceito de lusismo parte da sua condiçom de significante vazio ou altamente controverso no universo lusófono. O lusismo pode interpretar-se nesta perspetiva como um construto simbólico do patriotismo português com escasso eco mundo afora. Umha espécie de hispanidade em versom portuguesa, mesmo afetada por achaques de velhice mais severos que a sua decrépita versom espanhola, se acreditamos no mestre Eduardo Lourenço. O taciturno pensador português é um guia inescusável em qualquer viagem iniciática ao controverso conceito[2]. Nom cederemos à tentaçom de resumir as suas lúcidas reflexons sobre o mal-estar da consciência coletiva portuguesa e a sua compensaçom simbólica no graal lusista. Os mestres ham de ser lidos.

Galiza partilha com Portugal a sua raiz identitária mais íntima que é o próprio idioma. A naçom galega orgulha-se de pertencer ao viçoso continente das lusofonias que nos ampara do minguado provincianismo que por aqui campa. Talvez seja chegada a hora de retomar o discurso reabilitador do nosso idioma para inseri-lo na cepa forte das lusofonias. Se assi for, talvez convinhesse lembrar que inserir gomo adventício em cepa velha requer destreza. Aceitemos o desafio, a arte de enxertar é o ofício original da agálica legiom contra a hipótese da sua hibernaçom permanente, da prática da eutanásia passiva. Joám Facal – Galiza in “Portal Galego da Língua”


NOTAS A RODAPÉ

[1] CL-AGAL (2012): O Modelo Lexical Galego. Fundamentos da Codificaçom Lexical do Galego-Português da Galiza. Através Editora. Santiago de Compostela.

[2] Eduardo Lourenço (2004): “Imagem e miragem da lusofonia” em A nau de Ícaro, Gradiva, Lisboa.

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