Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

A língua que ninguém fala

"Se sofres particularmente por não estares a fazer algo que te parece certo, por que não ages, em vez de te lamentares?"
                                  Marco Aurélio

Não é muito arriscado para um escritor – precisamente por não ser um linguista – afirmar, que hoje em dia na Galiza, a realidade da língua chamada galega passa por uma perceção concreta de que o seu uso não só está a diminuir, como que nem sequer possamos dizer que esteja precisamente dele a fazer-se um "correto uso", ou a ser usada quanto menos tal como deveu ser previsto pelas autoridades, que no seu dia levaram à frente a implementação das "Normas Ortográficas e Morfológicas do Idioma Galego", através do Decreto "Filgueira" de 1982, desenvolvido desde as achegas da RAG e o ILG. Ou talvez sim. Talvez essas autoridades já previram isto: o abandono coletivo da língua de menor prestígio social (o galego) face à língua de maior prestígio e peso social (o castelhano); tentado precisamente com este decreto travar esse futuro, hoje feito presente. Mas se isso foi previsto e a normativa não cumpriu seu fim, só resta o paliativo da correção do diagnóstico e a mudança do tratamento.

Acontece que nesta altura a absorção da língua galega pelo castelhano se faz tão evidente, que a normativa atual só pode ser implementada a nível escolar ou académico. A realidade social caminha por outros vieiros.

Três são as falas que hoje e dia subsistem ao nível de rua, e mesmo em certos casos até compartilham espaços na atual Comunidade Autónoma da Galiza.

O castelhano: língua em ascensão que possibilita melhor a comunicação a todos os níveis. É a língua que prevalece na maior parte do tecido urbano, dominante ou quase única nos meios de comunicação social. Nela desenvolvem-se a maioria das trocas comerciais, efetuadas através de e por todo o país; assim como a maior parte de todo o tipo de relatórios legais ou privados... Mesmo da correspondência comercial ou privada (incluído a de suporte eletrónico) realizada por escrito. É a língua de charme, mas também a língua da classe operária. A língua de referente também no nível de ócio ou da arte, incluindo a musica... Inclusive na maior parte das canções utilizadas nas assim chamadas "festas populares" (onde quase todo o repertório das Orquestras se faz nesse idioma)...

O galego-castelhano (diluindo-se devagarzinho no processo de absorção que agora estamos presenciando). Esta é uma fala que continua recluída ao âmbito familiar e das relações de amizade. Língua hibrida desprestigiada (consciente ou inconscientemente) pelos próprios utentes, que reduzem o seu uso ao âmbito coloquial da comunicação mais privada.

Cada vez menos empregue graficamente, cada vez menos utilizada para expressar os pensamentos ou sentimentos mais íntimos da maioria das pessoas. Ou bem muito limitada para o uso das relações que consideramos serias como: criar os filhos, dirigir-se a alguma instituição ou simplesmente recorrer a algum tipo de serviço necessário para manter a nossa "coesão" social (levar o carro à oficina, ir cortar o cabelo, jantar num restaurante...). Quer dizer, faz-se mais dificultoso fazer uma vida normal nela.

O galego-castelhano (na falta de estatísticas sérias) ocupa um lugar ainda visível no mundo rural, ou das pequenas vilas, mas já não no citadino urbano ou no das vilas que aspiram em breve a ostentar o título de cidade (onde a mudança para o castelhano ocorre de modo "natural" e sem confronto, ao ter a língua de prestígio um atrativo social irrefreável)

O galego-português. Fala dum pequeno grupo conscientizado, no que com o tempo se deu em chamar movimento "Lusista ou Reintegracionista". Fala que não corre perigo de extinção como o galego-castelhano, o qual sofre a introdução invasiva contínua de léxico da língua A para a língua B, estando em caminho de transitar a uma espécie de gíria da língua castelhana. Não podendo já neste presente sobreviver sem as ferramentas que esta lhe presta.

O galego-português, pelo contrário, goza de muito boa saúde tanto no reduzido número de falantes que mantém na Galiza, como dentro duma ampla comunidade internacional (290 milhões a nível mundial) onde cada vez o seu prestígio tem mais reconhecimento. Embora moderadamente, a sua tendência na Galiza mantém-se em expansão desde que a princípios dos anos oitenta a AGAL (Associação Galega da Língua) iniciasse a sua andaina em favor duma normativa mais em sintonia com os preceitos do galeguismo clássico, desde os Padres Sarmiento e Feijó até a Geração Nós. Carvalho Calero e Guerra da Cal foram as figuras mais em destaque, que na época do franquismo fizeram (dentro e fora do país) as achegas e apostas mais interessantes a este movimento reintegrador.

Daí inferimos que o crescimento contínuo experimentado pelo galego-português na Galiza tem a sua causa, entre outras cousas, no amor e cuidado com que os utentes que usufruem desta alternativa estão a agarimar a sua fala; mas também nas ferramentas que estes usuários possuem, muito superiores àquelas a que podem recorrer os falantes de galego-castelhano (de dicionários, material pedagógico ou didático até à net, livros, filmes, jornais, música...)

Assim como também no nascimento e criação de redes já estáveis que vão da base popular até ao mundo académico – como o demonstra a recente criação da AGLP (Academia Galega da Língua Portuguesa) com o apoio das outras Academias irmãs. Além das relações a todo o nível – académico, cultural, sindical... – que se estão a desenvolver entre a Galiza e o resto da lusofonia.

Estamos, pois, numa tessitura onde o galego ILG – RAG já não tem mais emprego que a escrita oficial – dos documentos oficiais, manuais escolares das disciplinas veiculadas em galego, livros de diversa divulgação editados nesta normativa e pouco mais. Mesmo nem é utilizada, na sua fala diária, pelos funcionários ou professores, que redigem ou ministram estes documentos ou matérias do currículo escolar.

Apontamento Politico. Com a implementação da Lei Wert, a presença do castelhano ainda será mais firme e a sua expansão e assentamento mais evidente, ao perder o galego-castelhano, ou ver muito enfraquecido, o seu último reduto de apoio e sonhos: a sua presença constante no ensino.

Apontamento pessoal. Da minha visão, cada vez se faz mais impossível viver em galego-castelhano, o qual aumenta o isolamento destes falantes perante a falta de comunidade real de fala. Mas será que é possível viver em galego português hoje na Galiza? Acho que sim, porque a relativa pequenez da comunidade de falantes desta opção pode ser compensada com a ampla rede de falantes a nível global e de ferramentas efetivas e imediatas, que esta variante tem (a maiores dos centros sociais, diversificados por todo o país ou projetos coletivos de muita alta dignidade: como a Escola Semente)... Factos que, sem dúvida, diminuem a sensação de isolamento. Além disso, o trabalho continuado de rua, feito pelo lusismo ou reintegracionismo de base tem aberto muitas mentes, e cada vez é menos estranha a situação, na qual as pessoas que olham para escritos em galego-português sejam capazes de ler e compreender mensagens com grafias, antes alheias, como NH ou LH.

Olhando as cousas sob este prisma, a não mudança já não é questão de teimosia mas de imobilismo. Artur Alonso – Galiza in “Portal Galego da Língua”


"A única coisa que temos de respeitar, porque ela nos une, é a língua."
                                                                                                        Frank Kafka

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