Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

domingo, 7 de julho de 2013

Benevolência

“Ninguém é seu proprietário, pois ela não é objecto, mas cada falante é seu guardião, podia dizer-se a sua vestal, tão frágil coisa é, na perspectiva do tempo, a misteriosa chama de uma língua.”

“A celebrada alma portuguesa pelo mundo repartida, de camoniana evocação, foi, sobretudo, língua deixada pelo mundo. Por benfazejo acaso, os portugueses, mesmo na sua hora imperial, eram demasiado fracos para “imporem”, em sentido próprio, a sua língua. Que ela seja hoje a fala de uma país-continente como o Brasil e a língua oficial de futuras nações como Angola e Moçambique, que em insólitas paragens onde comerciantes e missionários da grande época puseram os pés, de Goa a Malaca ou a Timor, que a língua portuguesa tenha deixado ecos de sua existência, foi mais benevolência dos deuses e obra do tempo do que resultado de concertada política cultural. Sob essa forma, um tal projecto seria mesmo anacrónico. Nenhum autor português, nem nenhum estrangeiro, escreveu acerca de nossa acção uma obra como “a conquista espiritual do México”, pois não tivemos nenhum México para conquistar e hispanizar. O derramamento, a expansão, a crioulização da nossa língua foram, tal como as nossas “conquistas”, obra intermitente de ganância (da terra e do céu), mais do que premeditada “lusitanização” como nós imaginamos – porventura enganados – que terá sido a romanização do mundo antigo ou a francização e anglicização dos impérios francês e britânico. Quiseram também as circunstâncias – na sua origem pouco recomendáveis – que a nossa língua europeia, em contacto com a africana escrava, se adoçasse, mais do que já é na sua versão caseira, para se tomar esse ritmo aberto e sensual, indolente, do português do Brasil ou o tom nostálgico de Cabo Verde.

A miragem imperial dissolveu-se há muito. Da nossa presença no mundo só a língua do velho recanto galaico-português ficou como elo essencial entre nós, como povo e como cultura, e as novas nações que do Brasil a Moçambique se falam e mutuamente se compreendem entre as demais. Uma língua não tem outro sujeito senão aqueles que a falam, nela se falando. Ninguém é seu “proprietário”, pois ela não é objecto, mas cada falante é seu guardião, podia dizer-se a sua vestal, tão frágil coisa é, na perspectiva do tempo, a misteriosa chama de uma língua.” Eduardo Lourenço - Portugal

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