“O acordo ortográfico é um aleijão.
Linguisticamente malfeito, politicamente mal pensado, socialmente mal
justificado e finalmente mal implementado. Foi conduzido, aqui no Brasil, de
modo palaciano: a universidade não foi consultada, nem teve participação nos
debates (se é que houve debates além dos que talvez ocorram durante o chá da
tarde na Academia Brasileira de Letras), e o governo apressadamente o impôs
como lei, fazendo com que um acordo para unificar a ortografia vigorasse apenas
aqui, antes de vigorar em Portugal. O resultado foi uma norma cheia de buracos
e defeitos, de eficácia duvidosa. Não sei a quem o acordo interessa de fato. A
ortografia brasileira não será igual à portuguesa. Nem mesmo, agora, a
ortografia em cada um dos países será unificada, pois a possibilidade de
grafias duplas permite inclusive a construção de híbridos. E se os livros
brasileiros não entram em Portugal (e vice-versa) não é por conta da
ortografia, mas de barreiras burocráticas e problemas de câmbio que tornam os
livros ainda mais caros do que já são no país de origem. E duvido que a
ortografia seja uma barreira comercial maior do que a sintaxe e o ai-meu-deus
da colocação pronominal. Mas o acordo interessa, é claro, a gente poderosa. Ou
não teria sido implementado contra tudo e todos. No Brasil, creio que sobretudo
interessa às grandes editoras que publicam dicionários e livros de referência,
bem como didáticos. Se cada casa brasileira que tem um exemplar do Houaiss, por
exemplo, adquirir um novo, dada a obsolescência do que possui, não há dúvida
que haverá benefícios comerciais para a editora e para a Fundação Houaiss –
António Houaiss, como se sabe, foi um dos idealizadores e o maior negociador do
acordo. O mesmo vale para os autores de gramáticas e livros didáticos – entre
os quais se encontram também outros entusiastas da nova ortografia. E não é de
espantar que tenham sido justamente esses – e não os linguistas e filólogos
vinculados à universidade – os que elaboraram o texto e os termos do acordo.
Nem vale a pena referir mais uma vez o custo social de tal negócio: treinamento
de docentes, obsolescência súbita de material didático adquirido pelas
famílias, adequação de programas de computador, cursos necessários para
aprender as abstrusas regras do hífen e outras miuçalhas. De meu ponto de
vista, o acordo só interessa a uns poucos e nada à nação brasileira, como um
todo. Já Portugal deu uma prova inequívoca de fraqueza ao se submeter ao
interesse localista brasileiro, apesar da oposição muito forte de notáveis
intelectuais, que, muito mais do que aqui, argumentaram com brilho contra o
texto e os objetivos (ou falta de objetivos legítimos) do acordo.” Paulo Franchetti – Brasil
Paulo
Franchetti
é crítico literário, escritor e professor titular do Departamento de Teoria
Literária da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Publicou, no Brasil, entre outros livros, os
ensaios Alguns aspectos da teoria da poesia concreta (1989), Nostalgia, exílio
e melancolia – leituras de Camilo Pessanha (2001), Estudos de literatura brasileira
e portuguesa (2007), e organizou o volume Haikai – antologia e história (1990).
Preparou edições comentadas de Coração, Cabeça e Estômago (2003) e, para a
Ateliê Editorial, O Primo Basílio (1998), Iracema (2007), A cidade e as serras
(2007), Dom Casmurro (2008), Clepsidra (2009) e O cortiço (2012, no prelo).
Publicou ainda, em Portugal, a edição crítica da Clepsydra, de Camilo Pessanha
(1995); a antologia As aves que aqui gorjeiam – a poesia do Romantismo ao
Simbolismo (2005) e o ensaio O essencial sobre Camilo Pessanha (2008). É também
autor da novela O sangue dos dias transparentes (2003), da coletânea de haicais
Oeste/Nishi (2008), do livro de sátiras Escarnho (2009) e do livro de poemas
Memória futura (2010).
Desde 2002, dirige a Editora da Unicamp,
tendo neste período conseguido 6 prémios Jabuti e colocado, no ranking de 2010,
a Unicamp no 5º lugar das melhores editoras do Brasil, apenas com a Editora da
UFMG melhor colocada, em 4º, de entre as editoras universitárias. De notar que,
de acordo com esse ranking, entre as 19 melhores editoras do Brasil, 4 são
universitárias, ou seja, um pouco mais de 20%. Paulo Franchetti junta às suas
facetas de professor, orientalista, crítico, poeta, ficcionista e editor, a de
conhecedor profundo da literatura portuguesa, sobretudo das obras de Camilo
Castelo Branco, Eça de Queirós, Oliveira Martins, Camilo Pessanha (cuja edição
fixou, laminando uma série de lendas de longo curso sobre o poeta e a obra) e
Fernando Pessoa.
Sem comentários:
Enviar um comentário