Bana – Um Digno Filho das Ilhas
A morte do cantor cabo-verdiano, Bana,
colheu-me de surpresa e abalou os meus alicerces emocionais. Tinha-o como uma
das maiores referências da música do Arquipélago. A morte do Bana
transportou-me de volta para as memórias de há dezenas de anos, quando eu ainda
era um jovem e o Bana estava já na fase madura da sua vida.
Através do Bana, tomei um mais íntimo
contacto com a música das Ilhas. Mas, também com Luís Morais, depois com a bela
voz de Cesária Évora. Com o passar do tempo, passei a ouvir Ildo Lobo, ele que
ocupa um lugar destacado no panteão dos grandes cantores das Ilhas.
Muito antes do Bana, já ouvia os cantares de
Fernando Queijas, e soube do significado e das composições de Eugénio Tavares,
Manuel de Novas e de B. Leza. A música e a poesia de Cabo Verde sempre me
encheram a alma – moldaram-me a alma. Parte da minha infância – e também da
minha juventude – foi vivenciada sob os acordes da música cabo-verdiana.
A minha mãe, filha de cabo-verdiano, tinha presente
no sangue o gene da morabeza. No seu paladar reinava, igualmente, o gosto pela
catchupa. Foi, pois, ela que nos ensinou o sentir da morabeza e o gostar da
catchupa…
Nos momentos de maior nostalgia, emergiam do
quarto da minha mãe sons de mornas, de fados e de música clássica de que ela
tanto gostava. A minha mãe apreciava a boa música – que era, talvez, a sua
melhor companhia.
O Eleutério Sanches e o Tomás de Jesus
Henriques, que depois vieram a criar o conjunto “Estrela Canora” – constituído
por filhos de cabo-verdianos – faziam serenatas para a minha família, para as
minhas irmãs, tocando violão e cantando cantares das Ilhas. A sua companhia e
os seus cantares atenuava-nos a dor do pai precocemente perdido. Assim, fomos
ganhando um grande afecto pela música das Ilhas e pela sua poesia. Os músicos
cabo-verdianos eram, no fundo, todos poetas…
Guardo imensa saudade desses momentos da
minha infância. Uma saudade que aumenta quando ouço (ou leio) o poema do Mário
António recordando “os emigrados das ilhas que falam de bruxedos e sereias e
tocam violão…”. Conheci o local onde habitavam muitos desses emigrados das
Ilhas, e recordo-me de ouvir o som do seu violão a embalar a nostalgia da
morna…
Passados alguns anos (não tantos assim), lá
fui eu parar a uma das Ilhas, ao Arquipélago da Morabeza. Foi aí que eu senti
na carne e no osso o efeito da estiagem que obrigou os seus homens e mulheres a
demandaram outras paragens. Muitos deles vieram para Angola.
Os filhos das Ilhas cruzaram os oceanos em
busca de uma guarida, de um espaço menos exposto aos caprichos da natureza. Os
filhos da Ilhas viraram verdadeiros cavaleiros andantes e colocaram pedras nos
alicerces do mundo… De algum modo, Angola é também um pouco um fruto dos filhos
das Ilhas… Aqui, em Angola, os filhos da Ilhas trabalharam duro, de um modo
abnegado, quase de sol a sol. E, no repouso, abriram sempre as portas da
saudade. Tocando violão, como os quis imortalizar o poeta Mário António.
Nesse belo poema caracterizando as noites de
luar no Morro da Maianga, o Mário António recordou a alma e também a têmpera
dos cabo-verdianos… Têmpera do guerreiro, do cruzador de oceanos, de gente que
não hesita em percorrer o mundo em busca de um pequeno espaço de felicidade.
O meu avô Vicente Costa cruzou o oceano aos
15 anos de idade, vindo de Santo Antão, da Ribeira Grande. Possivelmente, terá
embarcado da Ponta do Sol. O meu avô Vicente Costa deixou nas suas costas a
dependência da natureza. O meu avô Vicente Costa não se quis sujeitar aos
caprichos da natureza – por isso, não se rendeu. Não se deixou postado na costa
ou no cimo da montanha a olhar o mar infinito – sem esperança. O meu avô
Vicente Costa partiu para a aventura. E venceu.
Quando cheguei ao Tarrafal, sobre as
montanhas que circundavam o Campo ainda restavam vestígios de uma chuva velha,
impregnada numa minúscula película de verde vegetal. Tive oportunidade de ver
algum gado a pastar. Mas, com o passar do tempo, o gado foi emagrecendo, foi
perdendo imponência e beleza, dando a ideia de que estava a perder a esperança
de resistir à natureza.
Na encosta da montanha iam ficando apenas as
cabras a vasculhar por debaixo das pedras, buscando pequenas raízes para se
alimentarem. E as mulheres, magras e curvadas, subindo ou descendo a encosta,
como se estivessem em busca de nada…
A estiagem quase que matou todo o gado de
Cabo Verde. O pouco que restou foi enviado para a Guiné, onde a chuva caía em
abundância. Nas Ilhas, ficara apenas o ronronar do Harmatão – esse vento forte
que sopra do continente africano, que vem do deserto, que transporta a morte
animal e vegetal. Ficaram também os corvos e as pragas de gafanhotos. Até mesmo
as moscas que acompanham o gado haviam bazado… Foi assim que nos tornamos
todos, verdadeiramente, flagelados do vento leste…
Com o passar dos anos, a chuva teimava em
não cair. E os homens da Ilhas partiram para Portugal, para a França, para a
Holanda, para a América. E as Ilhas gemiam de dor e de saudade. E nós, os
presos, continuávamos para ali lançados, na esperança de um dia diferente… Mas,
resistimos, juntamente com os burros, com os corvos e com alguns insectos. E
com o povo que ficou na miséria. A estiagem arrasava tudo, massacrava as Ilhas.
E os filhos da Ilhas partiam cada vez mais. Hoje, muitos do seus descendentes povoam
países em várias partes do mundo.
Até que um dia choveu… Caiu chuva braba que,
rapidamente, abriu sulcos na encosta da montanha. Pareciam rios loucos a
procura do mar. Mas, a chuva desapareceu tão rápido como chegou….
Essa chuva louca matou uma jovem mulher,
acabada de casar. A noiva que a chuva louca matou casara no dia anterior. E o
emigrante que veio apenas para casar ficou viúvo, de súbito.
A noiva do emigrante, que aproveitou o sulco
de água aberto na montanha para lavar a roupa, foi enrolada pela corrente que
desceu a montanha, arrastando tudo no caminho. De dentro do Campo, ouvi os
gritos do povo, descendo a montanha. Uma noiva estava a ser enrolada e
destroçada pela água e pelas pedras que encontrava no caminho. O noivo ficou
viúvo, de súbito.
Esse foi o dia em que eu tomei conhecimento
de uma realidade que lera apenas no poema que diz que “quando não há chuva,
morre-se de sede, e quando a chuva chega, morre-se afogado”.
Agora, desta vez, morreu Adriano Gonçalves, o
Bana, um digno filho das Ilhas. O Bana não foi vítima da estiagem, nem foi
enrolado pela chuva louca que desce a montanha. O Bana, esse ilustre e digno
filho das Ilhas, morreu aos 81 anos, em Lisboa.
Tenho a certeza que o suor do Bana vai regar
o solo das Ilhas. Como aquela chuva doce que Amílcar Cabral cantou para a
Cidade Velha… Anunciando a todas as mães de Cabo Verde a chegada da Esperança…
À minha mãe também. Pinto de Andrade -
Angola
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