Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Bana

 
Bana – Um Digno Filho das Ilhas
 
A morte do cantor cabo-verdiano, Bana, colheu-me de surpresa e abalou os meus alicerces emocionais. Tinha-o como uma das maiores referências da música do Arquipélago. A morte do Bana transportou-me de volta para as memórias de há dezenas de anos, quando eu ainda era um jovem e o Bana estava já na fase madura da sua vida.
 
Através do Bana, tomei um mais íntimo contacto com a música das Ilhas. Mas, também com Luís Morais, depois com a bela voz de Cesária Évora. Com o passar do tempo, passei a ouvir Ildo Lobo, ele que ocupa um lugar destacado no panteão dos grandes cantores das Ilhas.
 
Muito antes do Bana, já ouvia os cantares de Fernando Queijas, e soube do significado e das composições de Eugénio Tavares, Manuel de Novas e de B. Leza. A música e a poesia de Cabo Verde sempre me encheram a alma – moldaram-me a alma. Parte da minha infância – e também da minha juventude – foi vivenciada sob os acordes da música cabo-verdiana.
 
A minha mãe, filha de cabo-verdiano, tinha presente no sangue o gene da morabeza. No seu paladar reinava, igualmente, o gosto pela catchupa. Foi, pois, ela que nos ensinou o sentir da morabeza e o gostar da catchupa…
 
Nos momentos de maior nostalgia, emergiam do quarto da minha mãe sons de mornas, de fados e de música clássica de que ela tanto gostava. A minha mãe apreciava a boa música – que era, talvez, a sua melhor companhia.
 
O Eleutério Sanches e o Tomás de Jesus Henriques, que depois vieram a criar o conjunto “Estrela Canora” – constituído por filhos de cabo-verdianos – faziam serenatas para a minha família, para as minhas irmãs, tocando violão e cantando cantares das Ilhas. A sua companhia e os seus cantares atenuava-nos a dor do pai precocemente perdido. Assim, fomos ganhando um grande afecto pela música das Ilhas e pela sua poesia. Os músicos cabo-verdianos eram, no fundo, todos poetas…
 
Guardo imensa saudade desses momentos da minha infância. Uma saudade que aumenta quando ouço (ou leio) o poema do Mário António recordando “os emigrados das ilhas que falam de bruxedos e sereias e tocam violão…”. Conheci o local onde habitavam muitos desses emigrados das Ilhas, e recordo-me de ouvir o som do seu violão a embalar a nostalgia da morna…
 
Passados alguns anos (não tantos assim), lá fui eu parar a uma das Ilhas, ao Arquipélago da Morabeza. Foi aí que eu senti na carne e no osso o efeito da estiagem que obrigou os seus homens e mulheres a demandaram outras paragens. Muitos deles vieram para Angola.
 
Os filhos das Ilhas cruzaram os oceanos em busca de uma guarida, de um espaço menos exposto aos caprichos da natureza. Os filhos da Ilhas viraram verdadeiros cavaleiros andantes e colocaram pedras nos alicerces do mundo… De algum modo, Angola é também um pouco um fruto dos filhos das Ilhas… Aqui, em Angola, os filhos da Ilhas trabalharam duro, de um modo abnegado, quase de sol a sol. E, no repouso, abriram sempre as portas da saudade. Tocando violão, como os quis imortalizar o poeta Mário António.
 
Nesse belo poema caracterizando as noites de luar no Morro da Maianga, o Mário António recordou a alma e também a têmpera dos cabo-verdianos… Têmpera do guerreiro, do cruzador de oceanos, de gente que não hesita em percorrer o mundo em busca de um pequeno espaço de felicidade.
 
O meu avô Vicente Costa cruzou o oceano aos 15 anos de idade, vindo de Santo Antão, da Ribeira Grande. Possivelmente, terá embarcado da Ponta do Sol. O meu avô Vicente Costa deixou nas suas costas a dependência da natureza. O meu avô Vicente Costa não se quis sujeitar aos caprichos da natureza – por isso, não se rendeu. Não se deixou postado na costa ou no cimo da montanha a olhar o mar infinito – sem esperança. O meu avô Vicente Costa partiu para a aventura. E venceu.
 
Quando cheguei ao Tarrafal, sobre as montanhas que circundavam o Campo ainda restavam vestígios de uma chuva velha, impregnada numa minúscula película de verde vegetal. Tive oportunidade de ver algum gado a pastar. Mas, com o passar do tempo, o gado foi emagrecendo, foi perdendo imponência e beleza, dando a ideia de que estava a perder a esperança de resistir à natureza.
 
Na encosta da montanha iam ficando apenas as cabras a vasculhar por debaixo das pedras, buscando pequenas raízes para se alimentarem. E as mulheres, magras e curvadas, subindo ou descendo a encosta, como se estivessem em busca de nada…
 
A estiagem quase que matou todo o gado de Cabo Verde. O pouco que restou foi enviado para a Guiné, onde a chuva caía em abundância. Nas Ilhas, ficara apenas o ronronar do Harmatão – esse vento forte que sopra do continente africano, que vem do deserto, que transporta a morte animal e vegetal. Ficaram também os corvos e as pragas de gafanhotos. Até mesmo as moscas que acompanham o gado haviam bazado… Foi assim que nos tornamos todos, verdadeiramente, flagelados do vento leste…
 
Com o passar dos anos, a chuva teimava em não cair. E os homens da Ilhas partiram para Portugal, para a França, para a Holanda, para a América. E as Ilhas gemiam de dor e de saudade. E nós, os presos, continuávamos para ali lançados, na esperança de um dia diferente… Mas, resistimos, juntamente com os burros, com os corvos e com alguns insectos. E com o povo que ficou na miséria. A estiagem arrasava tudo, massacrava as Ilhas. E os filhos da Ilhas partiam cada vez mais. Hoje, muitos do seus descendentes povoam países em várias partes do mundo.
 
Até que um dia choveu… Caiu chuva braba que, rapidamente, abriu sulcos na encosta da montanha. Pareciam rios loucos a procura do mar. Mas, a chuva desapareceu tão rápido como chegou….
 
Essa chuva louca matou uma jovem mulher, acabada de casar. A noiva que a chuva louca matou casara no dia anterior. E o emigrante que veio apenas para casar ficou viúvo, de súbito.
 
A noiva do emigrante, que aproveitou o sulco de água aberto na montanha para lavar a roupa, foi enrolada pela corrente que desceu a montanha, arrastando tudo no caminho. De dentro do Campo, ouvi os gritos do povo, descendo a montanha. Uma noiva estava a ser enrolada e destroçada pela água e pelas pedras que encontrava no caminho. O noivo ficou viúvo, de súbito.
 
Esse foi o dia em que eu tomei conhecimento de uma realidade que lera apenas no poema que diz que “quando não há chuva, morre-se de sede, e quando a chuva chega, morre-se afogado”.
 
Agora, desta vez, morreu Adriano Gonçalves, o Bana, um digno filho das Ilhas. O Bana não foi vítima da estiagem, nem foi enrolado pela chuva louca que desce a montanha. O Bana, esse ilustre e digno filho das Ilhas, morreu aos 81 anos, em Lisboa.
 
Tenho a certeza que o suor do Bana vai regar o solo das Ilhas. Como aquela chuva doce que Amílcar Cabral cantou para a Cidade Velha… Anunciando a todas as mães de Cabo Verde a chegada da Esperança… À minha mãe também. Pinto de Andrade - Angola


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