Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

terça-feira, 14 de março de 2017

Guiné-Bissau - Está a perder o fio à meada do português

O alerta é dado por Abdulai Silá: a língua portuguesa corre o risco de desaparecer da Guiné Bissau e já será falada por menos de um por cento da população do país. Fundador da Associação de Escritores da Guiné Bissau, Silá acusa o governo guineense de não ter uma “política linguística clara” para o ensino do português


Abdulai Silá, escritor guineense que está em Macau a convite do Festival Literário Rota das Letras, está preocupado com o estado da língua portuguesa no seu país, devido a um sistema educativo “falido”, que, diz, ignora o facto de menos de um por cento dos guineenses falar o idioma no dia-a-dia.

“O nosso sistema educativo está falido. Há cada vez menos capacidade de expressão em português. Isso chega ao ponto de ser preocupante, chega ao ponto em que pessoas que têm a língua como principal ferramenta de trabalho não a dominam o suficiente para exercer. Vê-se acórdãos, até no Supremo Tribunal, cheios de erros”, lamenta o escritor, em entrevista à agência Lusa.

Abdulai Silá, que cofundou e preside à Associação de Escritores da Guiné Bissau, diz que há “cada vez mais pessoas a escreverem em crioulo”, o que considera “saudável”, salientando que “essa necessidade de diálogo com o cidadão é cada vez mais forte”, mas alerta para o facto de, por outro lado, haver “uma dificuldade real de utilização do português”.

“Ensinamos o português como se se tratasse de um país onde as pessoas falam português no dia-a-dia. Isso é falso. Menos de um por cento dos guineenses fala português no seu dia-a-dia. Falam outras línguas, uma boa parte fala crioulo, outra nem sequer o crioulo fala. Não se pode ensinar essa língua ignorando essa realidade. O resultado é o que se vê”, crítica.

O autor de 59 anos apela a uma “política linguística clara”, que corrija situações como, por exemplo, professores que não dominam o português a ensinarem língua, como diz ter conhecimento de existirem: “Tenho dois sobrinhos a terminar o 12.º ano e não são capazes de escrever uma nota simples, ou ter uma comunicação básica sobre o estado do tempo. Fazem tantos erros, tantos erros. Não são culpados, são vítimas”, relata.

Com a comunicação oral “praticamente nula”, Abdulai Silá considera particularmente grave que as entidades que utilizam a escrita o façam de forma deficitária: “É muito difícil, por exemplo, ler-se os jornais, hoje. Na primeira página, erros crassos. Isso é muito mais grave do que se pode imaginar, num contexto em que não se fala, em que uma das formas mais eficientes de melhorar o conhecimento da língua é através da leitura. O guineense não fala português com outro guineense, é muito raro, mas escreve e lê o português todos os dias. Quando esse contacto com a língua não ajuda, porque está cheio de erros, as pessoas ficam na dúvida: será que é como escreveu o jornalista ou como eu aprendi noutro local?”, alerta.

Uma dificuldade ainda anterior a esta é a reduzida taxa de literacia do país, cerca de 60 por cento. Além dos que não sabem efectivamente ler e escrever, Silá lembra que há também “analfabetos funcionais”: “É o que temos e que é muito perigoso, pessoas que nunca pegam num livro, não cultivam a mente”, diz.

Perante esse cenário, um escritor questiona-se: “Vale a pena dirigir-se a uma pequena minoria, essa meia dúzia de indivíduos que decidem sobre o destino do país?”

Para contornar essa situação, a associação de escritores procura “envolver cada vez mais, e através de acções concretas, o cidadão comum, sobretudo o jovem”.

A associação tem cerca de duas dezenas de membros, mas as suas actividades são abertas a todos. Silá destaca os encontros mensais para discutir “a cultura de uma maneira geral”: “Num ambiente tão tenso como o que se tem vivido ultimamente na Guiné-Bissau, entendemos que deve haver momentos de lazer, momentos de reflexão, momentos de convívio, de pacificação. Há sempre um convidado que tenha feito uma contribuição válida na história da Guiné-Bissau, seja de que área for”, explica. In “Ponto Final” - Macau

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