I
A História do Brasil, como
a de tantos países, até hoje tem sido escrita sob uma ótica masculina. Neste
país, quando se lê livros da época colonial, é como se as mulheres sempre tivessem
vivido numa penumbra social, limitando-se a reproduzir. Até mesmo nesta função sua
presença tem sido relativizada. Basta ver que os chamados bandeirantes até hoje são idealizados em gravuras e estátuas como
se fossem brancos, bem vestidos, embora nos séculos XVII e XVIII a presença de
mulheres brancas na América portuguesa fosse insignificante. Na imensa maioria,
os bandeirantes seriam filhos de
indígenas, de africanas ou de miscigenadas, pois poucas mulheres brancas
enfrentaram o desafio de atravessar o Atlântico.
Foi preciso que o
historiador Luciano Figueiredo, doutor em História Social
pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Federal
Fluminense (UFF), escrevesse dois livros basilares sobre o assunto – O avesso da memória: cotidiano e trabalho da
mulher em Minas Gerais
no século XVIII (Rio de Janeiro, José Olympio, 1993) e Barrocas famílias: vida familiar em Minas Gerais no
século XVIII (São Paulo, Hucitec, 1997) para que se descobrisse que, no
século XVIII em Minas
Gerais , parte significativa das mulheres negras e mestiças
atuou no comércio, contribuindo decisivamente para o crescimento da economia da
capitania.
Muitas dessas mulheres eram
conhecidas como as negras de tabuleiro, enquanto outras eram proprietárias de
vendas, as vendeiras. Neste caso, sua importância foi inegável para o
abastecimento das zonas mineradoras. Outras se envolveram com ofícios
mecânicos, sozinhas ou, às vezes, lado a lado com seus maridos ou concubinos em
padarias, tecelagens ou alfaiatarias. Se assim foi em Minas Gerais , com
predominância de mulheres negras, em outras regiões, como em Goiás, a presença
maior teria sido das indígenas e miscigenadas.
Nenhuma delas, porém, ao
que se saiba, chegou a se afirmar em patamar de igualdade no jogo do poder,
embora muitas tenham tido papel relevante nas questiúnculas palacianas,
valendo-se provavelmente da atração física para barganhar favores junto a
governadores e outras autoridades. Na
Antiguidade, porém, há alguns exemplos de mulheres que se celebrizaram em
épocas, espaços e sociedades distintas, exibindo em comum a força e a ousadia
do enfrentamento com os homens e o poder instituído, de que a Rainha de Sabá
talvez seja o exemplo mais clássico, até porque aparece na Bíblia (I Reis, 10:1-13).
Mas há também os casos de Elisa, Cleópatra e Zenóbia, que se destacaram na
História por sua sagacidade e inteligência, personagens do livro Rainhas da Antiguidade: sedução e majestade,
ensaio de História do mundo antigo da professora Dirce Lorimier Fernandes, doutora
em História Social
pela USP, que acaba de ser lançado pela editora Letra Selvagem, de Taubaté-SP.
II
A princesa fenícia Elisa é
a Dido, a imortal musa de Virgílio (70ª.C-19a.C), aquele que foi escolhido por
Dante Alighieri (1265-1321) para descer ao Inferno em A divina comédia. No livro II da Eneida, Dido acolhe Eneias em Cartago e lhe pede que conte a
tragédia da derrocada de Troia. Tornam-se amantes e o idílio vai até o livro V,
quando o destino obriga Eneias a seguir viagem para fundar o reino da Itália.
Amargurada, a rainha africana atira-se a uma pira funerária.
A segunda personagem deste
livro é a rainha egípcia Cleópatra (69a.-30a.C), aquela que subjugou pela
paixão os imperadores romanos César (62a.C-14d.C) e Marco Antônio (82a.C-30a.C).
Era descendente de Ptolomeu (366-283a.C), general de Alexandre, o Grande
(356a.C-323a.C), que depois da morte do comandante macedônio, resolveu criar um
império no Egito. Cleópatra não desempenhou apenas o papel de princesa
romântica, lasciva e pérfida que as lendas e o cinema lhe impuseram, mas foi
uma militante política, obcecada pela restauração do reinado ptolomaico.
Já Zenóbia (século III d.C),
a Rainha do Deserto, três séculos
adiante das duas personagens anteriores, tornou-se soberana absoluta na pequena
Síria, então reino de Palmira. Apoiou o judaísmo, patrocinou poetas e
pesquisadores e lançou-se a uma aventura expansionista, desafiando o poder de
Roma. Proclamando-se parente de Cleópatra, conquistou o Egito, mas sucumbiu
diante do exército de Aureliano (214-275).
III
A escolha dessas três
mulheres incomuns pela historiadora Dirce Lorimier Fernandes para personagens
de seu livro mostra, segundo Joaquim Maria Botelho, autor do texto de
apresentação publicado nas “orelhas”, a admiração da autora “pelas mulheres
fortes – mesmo as que pereceram, vitimadas pelas próprias fraquezas”. Para
Botelho, “este livro é uma composição narrativa de verdades e mitos,
descortinando informações que ultrapassam a frieza histórica”.
Fora do círculo de Elisa e
de Cleópatra, diz, na Grécia a situação feminina era ainda mais degradante,
pois, não tendo personalidade jurídica nem política, sempre estava à sombra da
figura masculina que se encarregava de tratá-la como uma possessão em todos os
sentidos. “Esta dependência gerava o analfabetismo e, em muitos casos, as
mulheres deviam se conformar com a educação recebida de sua mãe”, acrescenta.
Segundo a professora,
quanto ao matrimônio, a mulher era objeto de troca, não somente do possuidor
senão que geralmente se dotava com propriedades por parte do pai ao prometido
para assegurar o acordo matrimonial, mais parecido a uma transação econômica.
Aliás, um comportamento que ainda valia para o século XVIII em Portugal e suas
possessões ultramarinas, pois foi só com o Romantismo que o casamento passou a
ganhar outro foro com a valorização do amor, da fé, do sonho, da paixão e da
intuição.
IV
Dirce Lorimier Fernandes é
professora universitária, licenciada e pós-graduada em Letras pela Universidade
São Judas Tadeu (USJT) e doutora em História Social pela USP, além de crítica literária
e ensaísta, além de membro da diretoria da União Brasileira de Escritores (UBE)
e da Associação Paulista de Críticos de Artes (APCA). É, ainda, coautora dos
livros: Meu Nome é Zé
(São Paulo, Ideograma Técnica e Cultura), contos, Antologia de Contos da UBE (São Paulo,
Editora Global, 2009) e Inquisição
Portuguesa - Tempo, Razão e Circunstância (Lisboa, Prefácio, 2007).
É organizadora e coautora do livro Religiões
e Religiosidades - Leituras e abordagens (Arké 2008).
É também autora de A literatura infantil (Edições Loyola,
2003), A Inquisição na América Latina (Editora
Arké, 2004) e Rainhas da Antiguidade:
entre a realidade e a imagem do poder – Teodora, a imperatriz de
Constantinopla, Urraca e Teresa, duas rainhas obstinadas (São Paulo, Clube
dos Autores, 2012), entre outros. Adelto
Gonçalves - Brasil
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Rainhas da
Antiguidade: sedução e majestade (Elisa, Cleópatra e Zenóbia), de Dirce
Lorimier Fernandes. Taubaté-SP: Letra Selvagem, 160 págs., R$ 25,00, 2014.
Site: www.letraselvagem.com.br
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Adelto Gonçalves é doutor
em Literatura
Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de
Janeiro, José Olympio Editora, 1981), Gonzaga,
um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova
Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003) e Tomás Antônio Gonzaga (Academia
Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), entre
outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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