I
O professor Adelto
Gonçalves é conhecido e enaltecido pelo exercício da crítica literária, função
que desempenha com segurança, simpatia e estilo tanto nos modernos meios de
comunicação virtual — importantes sites do País e do exterior, notadamente
Portugal — quanto em órgãos da imprensa tradicional. A qualidade, a frequência
e a intensidade desse trabalho, uma das mais louváveis exceções à tendência dos
grandes periódicos, hoje, de eliminar a resenha crítica regular a cargo de
profissionais “do ramo”, competentes e respeitados, fazem, por si sós,
benemérita a pena do escritor.
A crítica registra e
analisa a produção literária, atuando como fiel e guia do leitor e armazenando,
para os historiadores e estudiosos do setor, informações sem as quais a
pesquisa seria um perder-se na floresta, cada vez mais densa e intrincada, dos
produtos e despejos editoriais. Sem a crítica restam a publicidade e a resenha
expositiva, cumpridoras, é certo, de um papel respeitável, mas incapazes, por
definição, de ir ao âmago da criação literária, em termos de técnica, de
humanismo e de arte.
Além disso, é autor de
ensaios literários, históricos e biográficos como, apenas exemplificando, os
que dedicou a Bocage, Tomás Antônio Gonzaga e Fernando Pessoa, que lhe
aumentaram a notoriedade e lhe granjearam justos prêmios.
Finalmente, sabemo-lo
autor de narrativas ficcionais, como os contos de Mariela Morta (sua estréia, em 1977) e o romance Barcelona Brasileira, publicado em
Lisboa, em 1999, e em São
Paulo , em 2002. Quanto a mim, tomo conhecimento direto desta
sua faceta de escritor apenas agora, com a recente publicação, por
LetraSelvagem, da segunda edição de Os
Vira-Latas da Madrugada. Tendo-o escrito no final da adolescência,
refundiu-o em 1977-78, vindo essa versão a merecer destaque, dois anos depois,
no Prêmio Nacional José Lins do Rego, da editora José Olympio, que o publicou
em 1981.
II
A trama tem base na
realidade, passando-se em Santos, num espaço fervilhante de vida e de miséria,
entre o porto, o bairro Paquetá e o centro da cidade. Os personagens são — diz
em nota o editor, Nicodemos Sena — “ex-sindicalistas, punguistas, jornaleiros,
vendedores de jogo do bicho, catadores de restos que caem no transporte antes
de chegar aos navios, mendigos, engraxates, cafetinas, cafetões, prostitutas e
jovens aprendizes de todo tipo de expediente”; os “vira-latas”, diz o posfácio
de Maria Angélica Guimarães Lopes, são os moleques do bairro.
E o tempo? Este, segundo o
autor, “não existe, os acontecimentos se confundem, as datas são esquecidas”;
não obstante, deve ser afastada a idéia de uma intemporalidade absoluta: a
trama se desenvolve às vésperas do golpe militar de 1964, que lhe impõe um
corte brusco, sem o recurso usual de um final definitivo.
Conforme detalha Ademir
Demarchi nas orelhas, em que lhe traça ágil roteiro, há um plano de fundo
fortemente político por trás do enredo, com personagens que rememoram a Coluna
Prestes e a era Vargas, tomados em cena “no período pré-golpe”.
Desse grupo humano emergem
com força figuras marcantes como o velho Marambaia, seu calejado “mestre”, e o
jovem Pingola com sua explorada amante, a jovem prostituta Sula. Marambaia,
legendário participante da Coluna, depois homem do mar e, nessa condição,
capitão de motins em defesa de direitos dos marujos, é forte presença nessas
páginas, com um halo de conselheiro e mentor. Pingola, seu protegido,
malandrinho, mas aprendiz de estatuário, leva sua contradição até a página
final, quando parece tomar consciência de sua condição subumana e apontar os
olhos para uma meta.
O verdadeiro protagonista
do romance, assim o sentimos, é a sua humanidade sofrida, recalcada em
patamares de primitivismo socioeconômico. O livro estrutura-se em três “confissões”,
palavras do eu-narrador que o comentam e definem, cada uma delas introduzindo
uma de suas partes, culminando com uma “Última confissão”, sem sequência,
espécie de brevíssima coda à guisa de “moral da história”. É interessante
registrar como numa dessas confissões, a segunda, o romancista nos adianta uma
das vertentes mais notórias do futuro crítico, o ensaio de fulcro histórico, ao
discorrer sobre a origem e a etimologia do nome de batismo da região do
Paquetá, com base nas anotações de Francisco Martins dos Santos, em sua História de
Santos, de 1937; e, naturalmente, ao descrever o Paquetá de “hoje”.
III
Sobre quem leia o livro
salteadamente, randomicamente — eu mesmo às vezes o faço, e isso é possível no
caso, pois os capítulos de Os Vira-Latas
da Madrugada soem ter um fechamento que lhes permite o folheio aleatório —,
impende o risco de acabar pespegando-lhe o rótulo de niilismo, tal o acúmulo de
desgraças e humilhações que relata. Se se detiver nas páginas que descrevem a
animalesca fúria repressória e torturadora dos beleguins da quartelada, ou nas
que pintam a loucura supostamente revolucionária do velho Marambaia, seguida de
seu covarde assassínio, tal conclusão parecerá indiscutível: a mensagem seria
de treva e desesperança.
Mas o capítulo do enterro
do negro artesão, quando Plínio intui que Marambaia “aproveitara o dinheiro do
jogo do bicho para dar ao pobre João de Angola um enterro decente”, antecipa
conclusão bem diversa. Pois, “então, Plínio sentiu uma ternura imensa por
Marambaia; nem tudo no mundo era mesquinharia”; e “de repente, ali, inclinado
sobre os joelhos, descobria a solidariedade, a honestidade, a amizade, valores
que pareciam mortos”. Outro momento luminoso é o que encerra o volume (antes da
já comentada “confissão” final), com Pingola, após o sepultamento de Angola,
que lhe ensinara a arte de esculpir em madeira, e o martírio de Marambaia, seu
protetor, abraçando a companheira grávida:
“Amanhã, iremos embora
desta merda de cais .... Vamos começar de novo. Ele vai precisar de um pai de
quem possa ter orgulho”, diz, apontando com os olhos para a sombra do ventre
inchado da mulher que se desenha na parede.
Valida-se, assim, em
termos de fé — ou pelo menos de esperança — em nossa tumultuosa humanidade,
este belo romance de Adelto Gonçalves, válido essencialmente, de resto, pelo
vigor da narração e pela compassividade intrínseca do narrador. Anderson Horta - Brasil
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Anderson
Braga Horta, mineiro de Carangola, poeta, ensaísta e crítico literário, formado
em Direito pela Universidade do Brasil-RJ, vive em Brasília desde 1960. Foi
diretor legislativo da Câmara dos Deputados e co-fundador da Associação
Nacional de Escritores. É membro da Academia Brasiliense de Letras e da
Academia de Letras do Brasil. Já conquistou 15 prêmios literários. É autor de Proclamações (Brasília, Editora
Thesaurus, 2013), entre outros livros de uma vasta obra.
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Os Vira-latas da
Madrugada, de
Adelto Gonçalves, com prefácio de Marcos Faerman, apresentação de Ademir
Demarchi, posfácio de Maria Angélica Guimarães Lopes e ilustrações e capa de
Enio Squeff. Taubaté-SP: Associação Cultural Letra Selvagem, 216 págs., 2015,
R$ 35,00. E-mail: letraselvagem@letraselvagem.com.br
Site:
www.letraselvagem.com.br
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