Apesar de tudo, o dia
nasceu. O mundo não se acabou. Acordou dolorido, enlutado e confuso. Por detrás
do seu traje negro, solene e silencioso, uma t-shirt branca gritava um slogan
em forma de hastag. Havia a
necessidade de expressar uma solidariedade instantânea, a necessidade vital de
dizer quem somos, de que lado estamos. Opino, logo existo. Só que ao contrário
dos slogans, ao contrário dos
malditos trending topics, a dor não é
descartável, de se usar e deitar fora.
Não sei o que é feito do
temível Joseph Kony, nas matas do Uganda, nem se a vida dos povos indígenas
guarani kaiowá melhorou depois de todos assinarem com o seu nome. O que
aconteceu às raparigas que foram arrancadas da escola, em Chibok, na Nigéria,
pelas garras do Boko Haram? Com que slogans
acompanhámos essa barbárie? Quando foi a última vez que o exército israelita
atacou o povo palestino? Quantas crianças mais morreram na praia depois
daquela? E Beirute, foi trending topic
no Twitter?
Não sou Charlie, nunca fui.
Não poderei ser Paris por dezenas de motivos. Nem tampouco quer este texto ser
um mero boicote à solidariedade e à empatia, dois recursos escassos no planeta.
No entanto, olho com olhos desconfiados para a manipulação que se faz desses
sentimentos, que podem ser tão úteis, quer para se chegar à prática de Justiça,
quer para se vender jornais, armas ou outros presentes envenenados.
É dessa empatia armadilhada
que me procuro defender, cada vez que abro o Facebook ou o jornal e encontro
uma nova encenação do apocalipse. Lembro-me, então, que o luto é coisa séria,
da ordem do silêncio e da reflexão sobre a perda. O luto dura, por vezes, a
vida inteira. Não dura até ao próximo acontecimento.
Silêncio é o que falta na
barulheira diária dos televisores que estão no centro das nossas salas de
estar. As regras do jogo obrigam-nos a reagir, num impulso honesto e colectivo
que gera uma espécie de onda avassaladora que amanhã se faz em espuma na areia,
“sin pena ni gloria”. Compromissos rápidos, conversas de café, transformando
lentamente eventos graves em banalidades. A repetição desses modelos de
marketing, a ocupação mediática passageira das coisas importantes, o desnorte
absoluto… tudo isso faz de nós mais frágeis e vulneráveis à violência.
Assusta-me, por um lado, a
superficialidade desses slogans. É
essa superficialidade que rapidamente se transforma em ódio e mais rapidamente
ainda se transforma em nada, em esquecimento. Assusta-me a selectividade dessa
empatia, os critérios que fazem com que os sapatos do outro nos sirvam ou não.
Infelizmente, as ondas de
solidariedade, aquelas que são reacções apressadas, reproduzem muitas vezes os
modelos de desigualdade social, económica, racial ou de género. Sentimos mais o
que nos está perto, o familiar. Ou às vezes nem isso, sentimos mais o que nos
servem no prato televisivo: frio, cru e amargo, engolindo sem mastigar.
Todas as manhãs, ao romper
dos primeiros raios de luz, o mundo parece que vai acabar. Para isso sobram
motivos. Mas não acaba, e muito por culpa das pessoas que insistem a cada dia, sem
t-shirts nem slogans, sem selfies nem
manchetes de jornais. Conheço algumas. Tu também. Elas andam por aí, na tua
rua. Só que não saem nas notícias e algumas nem têm televisão. Aline Frazão – Angola in “Rede
Angola”
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