O
feminismo negro de Paulina Chiziane (*)
Para
João Craveirinha, pela amizade e pelos subsídios fornecidos para
este ensaio.
I
Se a
literatura escrita por mulheres já é um mundo diferente, abordado por ângulos
que romancistas e contistas homens dificilmente vêem, imaginemos, então, o que
pode ser o mundo visto por uma mulher africana, moçambicana, ainda mais se é
governado por costumes e tradições que nos soam estranhos. Esse estranho e
mágico mundo é o que oferece em seus livros Paulina Chiziane (1955), a primeira
romancista negra de Moçambique.
Diz-se aqui
primeira romancista negra porque não seria correto chamá-la de primeira
escritora moçambicana, pois Lília Momplê (1935), nascida na Ilha de Moçambique,
autora de livros de contos e de uma biografia, professora, funcionária da
Unesco e ex-secretária-geral da Associação dos Escritores Moçambicanos, apareceu
antes dela, já à época pós-Independência. E é provável que haja outras moçambicanas
autoras de livros. Acontece que Lília Momplê,
descendente de macua, é mestiça, carregando sangue europeu nas veias. E, se o
critério for o de uma suposta africanidade, Paulina seria a primeira negra
escritora de Moçambique, mas definitivamente não é a primeira moçambicana
escritora.
É
claro que estes “divisionismos cromáticos” não levam a nada, até porque ninguém
seria mais ou menos moçambicano por causa da cor da pele. Seja como for, o que
se sabe é que na sociedade moçambicana destes dias há duas versões para esta
questão: uma para consumo interno (que nem todos são tão escuros) e outra para
consumo externo (mais abrangente).
Isto
sem contar certos "paternalismos colonialistas" que levam escritores de
Moçambique e Angola, com raízes mais européias do que afrobanto, a encontrar
melhor recepção na indústria editorial, além de maior divulgação pelos meios de
comunicação da antiga metrópole e do Brasil. Ou será que é só por falta de
informação ou coincidência que na universidade brasileira, durante encontros
sobre literatura africana de expressão portuguesa, só se fala em Mia Couto
(1955), José Eduardo Agualusa (1960) e Pepetela (1941)?
Afinal, não se pode dizer que
Paulina Chiziane seria desconhecida no Brasil. De Paulina, a Companhia das
Letras, de São Paulo, em 2004, lançou o romance Niketche. Uma história de
poligamia, que a Editorial Caminho, de Lisboa, publicou em 2002, enquanto
seus outros livros ainda aguardam a boa vontade de algum editor brasileiro.
Nascida em Manjacaze, na província
de Gaza, ao Sul de Moçambique, Paulina viveu no campo até os sete anos, quando
se mudou para os subúrbios da cidade de Maputo, onde freqüentou estudos
superiores de Lingüística na Universidade Eduardo Mondlane, sem concluí-los. Nasceu
numa família protestante onde se falavam as línguas chope e ronga.
No campo falava a sua língua
materna, o chope, e, quando se mudou para a cidade, teve de aprender o
português na escola, enquanto era obrigada nas ruas a falar o ronga, a língua
nativa de Maputo. “Sou chope, o meu pai era alfaiate de esquina, só depois
arranjou uma barraca. A minha mãe sempre foi camponesa, às vezes ficava uma
semana sem vir à casa, a tratar da machamba (plantação de mandioca)”. A voz da
escritora moçambicana Paulina Chiziane é serena, mas o orgulho das origens é
indisfarçável.
Aprendeu a língua portuguesa na
escola da missão católica. Aos 20 anos, cantou o hino da independência
moçambicana, gritou contra o imperialismo e o colonialismo e, depois, com a
guerra civil (1975-1992) que arrasou o país, desencantou-se. Por isso, os seus
livros nem sempre falam diretamente da guerra, mas de um país destruído, da
miséria de seu povo, da superstição, dos rituais religiosos e da morte.
Participou ativamente da vida
política de Moçambique como membro da Frente de Libertação de Moçambique
(Frelimo), na qual militou durante a juventude, tendo sido eleita nas primeiras
eleições multipartidárias em 1994. Mas trocou a vida partidária para se dedicar
à escrita, ao trabalho na Cruz Vermelha e à publicação das suas obras,
provavelmente, desiludida com o machismo que ainda marca as relações políticas
no país.
II
Em seu último livro, O alegre canto da perdiz (2008), além
dessas questões que marcam a secular submissão da mulher ao universo do homem
em certas sociedades africanas, Paulina leva o leitor a confrontar-se também
com a questão do reducionismo praticado por quem olha a África de fora e
procura apresentar a sua História e sua Literatura como se o continente africano
se tratasse de um só país, tal como denunciou a escritora nigeriana Chimamanda
Adichie (1977) em seu discurso contra o perigo de se ouvir e repetir uma história
única, a dos vencedores. (ADICHIE, 2009).
Como muito bem observa Nataniel
Ngomane, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da
Universidade Eduardo Mondlane, no posfácio que escreveu para este livro,
Paulina, se não é a primeira, com certeza, é a voz que mais alto se eleva hoje
para recuperar temas “esquecidos” por aqueles autores africanos de expressão
portuguesa cujas raízes remontam ao colonialismo – ainda que sejam críticos ou
tenham lutado contra o colonialismo –, ao aflorar temas como o racismo, a
assimilação, a subjugação de valores africanos aos valores europeus, a
poligamia, as relações de subserviência não só no lar, mas entre nações e
grupos étnicos.
Como o fizera em Balada de amor ao vento (1990), seu livro de estréia, com Sarnau,
em Ventos do apocalipse (1999), com Minosse
e Wusheni, em O sétimo juramento
(2000), com Vera, e em Niketche (2002),
com Rami, mulheres que vão à luta, em O alegre
canto da perdiz, Paulina apresenta Serafina, Delfina, Maria das Dores e
Maria Jacinta, uma geração de avó, filha e netas, personagens metonímicas que
se desdobram e mostram os conflitos da sociedade na Zambézia, província
moçambicana do Centro-Norte, onde a autora vive há largos anos.
A metáfora unificadora deste livro
está em que a Zambézia seria o centro do cosmos, com os Montes Namuli como o
ventre do mundo ou o berço da Humanidade. E isso vem oportunamente ao encontro
de uma investigação genética mundial hoje em curso denominada “The Genographic
Project”, da revista National Geographic,
em parceria com a IBM, que aponta que a espécie humana saiu de um tronco comum
africano e que o que existe hoje no mundo – e que, no passado, chamávamos de
“raças” – são variantes de uma marca genética comum.
Dessa forma, os atuais moçambicanos,
independentemente de que nação sejam, segundo essas pesquisas, seriam do
haplogrupo L0 do tipo mtDNA ( mt de linhagem mitocondrial), que teria surgido
há cerca de 100 mil anos na África Oriental, expandindo-se para o Oeste e o Sul
e mesmo para fora de África. Surpreendente é o fato detectado de que
partilhamos uma linhagem comum, ou seja, não seriam necessários mais que 20 mil
anos para que africanos mais escuros e de olhos pretos se tornassem europeus
nórdicos muito mais claros e de olhos azuis e vice-versa. “Toda a raça humana é
mestiça de cruzamentos híbridos muito antigos”. (CRAVEIRINHA, 2005,
pp.103-104).
A partir da reconstrução desse mito
– que, agora, começa a ganhar bases científicas –, Paulina reconstitui também o
mito da origem matricial do mundo. E por que a Zambézia? É que essa é a região
africana em que se deu com maior intensidade a miscigenação, a ponto de ser
conhecida como o Brasil da África.
Ao revisitar os mitos da origem
matricial, Paulina repete o que o antropólogo cubano Fernando Ortiz
(1881-1969), com base nas idéias do antropólogo polonês Bronislaw Malinowski
(1884-1942), batizou de transculturação, vocábulo que mais bem expressa as
diferentes fases do processo transitório de uma cultura para outra, pois esta
não consiste em apenas adquirir uma distinta cultura, que a rigor é o que o termo
anglo-americano acculturation significa
com toda a soberba de quem o cunhou, mas o processo implica necessariamente a
perda de uma cultura precedente, ou seja, uma parcial desculturação, e
significa a criação de novos fenômenos culturais (ORTIZ, 1973, pp.134-135).
Em outras palavras: não há
aculturados, no sentido da perda de uma cultura própria substituída pela do
colonizador (e no sentido africano o colonizador aqui não é só europeu, mas
refere-se também a povos africanos e outros que colonizaram e subjugaram povos
africanos, vendendo-os aos traficantes europeus). É o que se pode compreender
melhor nas palavras do escritor peruano José María Arguedas (1911-1969),
igualmente antropólogo: “Não sou um aculturado: sou um peruano que
orgulhosamente, como um demônio feliz, fala em cristão e em índio, em espanhol
e em quechua”. (ARGUEDAS, 1975, p.282).
O drama da África passa exatamente
pelo que outros povos fizeram dela, o que não significa que se o continente
tivesse continuado isolado, teria tido um futuro melhor. Um drama que Paulina
soube como ninguém resumir nestas linhas de O
alegre canto da perdiz:
“As mães gostam de dar aos filhos nomes de fantasia. Nomes de passageiros, de vagabundos. Os negros converteram-se. E começaram a chamar-se Sofia, Zainabo, Zulfa, Amade, Mussá. E tornaram-se escravos. Vieram os marinheiros da cruz e da espada. Outros negros converteram-se. Começaram a chamar-se José, Francisco, António, Moisés. Todas as mulheres se chamaram Marias. E continuaram escravos. Os negros que foram vendidos ficaram a chamar-se Charles, Mary, Georges, Christian, Joseph, Charlotte, Johnson. Baptizaram-se. E continuaram escravos. Um dia virão outros profetas com as bandeiras vermelhas e doutrinas messiânicas. Deificarão o comunismo, Marx, marxismo, Lénine, leninismo. Diabolizarão o capitalismo e o Ocidente. Os negros começarão a chamar-se Iva, Ivanova, Ivanda, Tania, Kasparov, Tereskova, Nadia, Nadioska. E continuarão escravos. Depois virão pessoas de todo o mundo com dinheiro no bolso para doar aos pobres em nome do desenvolvimento. E os negros chamar-se-ão Sofia, Karen, Tânia, Tatiana, Sheila. Receberão dinheiro deles e continuarão escravos”. (CHIZIANE, 2008, pp.156-157).
“As mães gostam de dar aos filhos nomes de fantasia. Nomes de passageiros, de vagabundos. Os negros converteram-se. E começaram a chamar-se Sofia, Zainabo, Zulfa, Amade, Mussá. E tornaram-se escravos. Vieram os marinheiros da cruz e da espada. Outros negros converteram-se. Começaram a chamar-se José, Francisco, António, Moisés. Todas as mulheres se chamaram Marias. E continuaram escravos. Os negros que foram vendidos ficaram a chamar-se Charles, Mary, Georges, Christian, Joseph, Charlotte, Johnson. Baptizaram-se. E continuaram escravos. Um dia virão outros profetas com as bandeiras vermelhas e doutrinas messiânicas. Deificarão o comunismo, Marx, marxismo, Lénine, leninismo. Diabolizarão o capitalismo e o Ocidente. Os negros começarão a chamar-se Iva, Ivanova, Ivanda, Tania, Kasparov, Tereskova, Nadia, Nadioska. E continuarão escravos. Depois virão pessoas de todo o mundo com dinheiro no bolso para doar aos pobres em nome do desenvolvimento. E os negros chamar-se-ão Sofia, Karen, Tânia, Tatiana, Sheila. Receberão dinheiro deles e continuarão escravos”. (CHIZIANE, 2008, pp.156-157).
III
Paulina recusa o rótulo de
romancista, definindo-se apenas como contadora de histórias, inspirada naquilo
que ouviu, quando criança e adolescente, da boca dos mais velhos à volta da
fogueira. É o que faz em seu romance Niketche,
nome que define uma dança de iniciação sexual feminina da Zambézia e de
Nampula, no Norte do país, região predominantemente macua, onde está a Ilha de
Moçambique, primeira capital das possessões portuguesas da África Oriental e
local de desterro do poeta Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), por onde passaram
também em épocas diversas os poetas Luís de Camões (c.1524-1580) e Manuel Maria
de Barbosa du Bocage (1765-1805).
É de lembrar ainda que na Zambézia, de que fala Chiziane, nas décadas
de 30 a 50, ainda praticava-se o muhito
que era uma cerimônia da puberdade feminina da região dos lomués (alguns
deles, entre 1800 a 1840, foram levados para Santa Catarina e São Paulo
como escravos), que etnolinguisticamente pertencem ao grupo dos macuas que
também foram levados para o Brasil e espalhados da Bahia a Montevidéu, ao final
do século XVIII, ápice do comércio negreiro na Ilha de Moçambique em direção ao
Sul da América. Essa cerimônia antiga, o muhito, consistia em preparar a jovem mulher para servir
o homem (macho alfa) em plenitude quer no prazer sexual quer na alimentação.
O
romance conta a história de amor entre Rami, mulher do Sul e de nível social
superior à da imensa maioria das mulheres do país, e Tony, alto funcionário da
polícia em Maputo. Casada há vinte anos de papel passado e aliança no dedo e
mãe de muitos filhos, Rami, desprezada pelo marido, desconfia de aventuras
extraconjugais de Tony. Então, descobre que o marido tem mais quatro mulheres e
muitos filhos. Vai à casa de cada uma das rivais, às vezes sai no braço com
elas, mas, no final das contas, trava amizade com todas a ponto de, em certo
dia, reuni-las em sua casa para fazer uma festa-surpresa ao marido.
A iniciativa, porém, desperta a ira
da sogra de Rami, para quem a monogamia é um sistema desumano que marginaliza
uma parte das mulheres, privilegiando outras, “que dá teto, amor e pertença a
umas crianças, rejeitando outras, que pululam pelas ruas”. Diz a sogra: “O meu
Tony, ao lobolar cinco mulheres, subiu ao cimo do monte. Ele é a estrela que
brilha no alto e como tal deve ser tratado. E tu, Rami, és a primeira. És o
pilar desta família. Todas estas mulheres giram à tua volta e te devem
obediência. Ordena-as”. (CHIZIANE, 2002, p. 125).
Lobolo é o dote que o homem dá à
mulher ao casar, mas lobolar aqui serve também para definir o ato de quem
sustenta um lar. Ao conhecer suas rivais, Rami vai entrar em contato com
séculos de tradição e de costumes, a crueldade da vida e também com a
diversidade de mundos e culturas que convivem em Moçambique.
É difícil entender estes pensamentos
sem conhecer a dimensão da tragédia africana. Em país de poucos homens –
milhares morreram na guerra, muitos ficaram mutilados, outros tantos emigraram
–, as mulheres, aparentemente, aceitam dividir seus maridos umas com as outras,
embora a poligamia venha de tempos já perdidos, quando os cultores do Islã
desceram a África e disseminaram suas crenças e costumes.
Em alguns lugares de Moçambique,
como na província sulista de Gaza, é comum que a mulher atenda ao chamado do
marido de imediato, largando tudo o que está fazendo. Mais: quando o marido
chama, ela não pode responder de pé. (CHIZIANE, 2002, p. 128). Também é difícil
entender esta conversa sobre violência na família em que o imaturo Tony, fruto
típico de uma sociedade patriarcal (CORREA, 2004), justifica a sua condição de
polígamo: “Nunca maltratei a Lu, bati nelas algumas vezes, apenas para
manifestar o meu carinho. Também te bati algumas vezes, mas tu estás aí, não me
abandonaste para lugar nenhum. A minha mãe sempre foi espancada pelo meu pai,
mas nunca abandonou o lar. As mulheres antigas são melhores que as de hoje, que
se espantam com um simples açoite (...)”. (CHIZIANE, 2002, pp.282-283).
Ou entender o conformismo de Rami:
“(...) Transmito às mulheres a cultura da resignação e do silêncio, tal como
aprendi da minha mãe. E a minha mãe aprendeu de sua mãe. Foi sempre assim desde
tempos sem memória (...). (CHIZIANE, 2002, p. 254).
IV
Para as seguidoras de Simone de
Beauvoir (1908-1986) e Flora Tristán (1803-1844), tudo isto, certamente, parece
estranho, mas é a forma que Paulina encontrou de denunciar o sofrimento das
mulheres africanas, subvertendo os valores tradicionais. Isso não significa que
partilhe integralmente dos valores das feministas brancas. A dita civilização
branca já levou tanto sofrimento à África que qualquer idéia, mesmo emoldurada
por valores humanitários, sempre é recebida com desconfiança. E não poderia ser
diferente.
O trágico é que o grito de Paulina,
dificilmente, será ouvido ou compartilhado pelas mulheres de Moçambique, pois
os escritores africanos escrevem para o leitor branco de fora de seus países
que pode comprar seus livros, já que, em razão dos altos índices de
analfabetismo e dos baixos níveis socioeconômicos, as tiragens nos países
africanos de língua portuguesa são ínfimas, o que não significa que em Portugal
e no Brasil sejam muito superiores.
Em Balada de amor ao vento (1990), seu primeiro romance, Paulina recupera
as histórias dos rongas e dos chopes, que ouviu em sua infância, quando ficava
a escutar a avó contar casos ao pé da fogueira. Os rongas, o povo do Sol
Nascente, chegaram à região de Maputo há mais de 700 anos, procedentes dos
Grandes Lagos. O povo chope veio da província de Gaza e da província de
Inhambane, falando línguas bantu, da família Niger-Congo. Essas populações já
estavam à beira da baía de Maputo quando os portugueses chegaram em 1502 à
Terra dos Mpfumos (Grande Maputo), com o navegador Luís Fernandes à frente,
numa caravela perdida de um comboio que seguia rumo à Índia (CRAVEIRINHA, 2002,
p. 20).
As duas línguas que compõem este
grupo são o XiChope, falado principalmente nos distritos de Inharrime e Zavala
e no posto administrativo de Chidenguele, e o biTonga, falado na cidade de
Inhambane e nos distritos de Maxixe e Jangamo. Estas são as origens de Paulina.
Uma das histórias de sua gente é a de Sarnau, a jovem que descobriu que amava
Mwando, um rapaz que estava encaminhado para ser padre. Como o namoro não
prosperava, cada um vai para um lado e Sarnau acaba virando uma das mulheres do
rei das terras de Mambone.
Paulina conta a história desse relacionamento,
da juventude à idade madura, suas alegrias e sofrimentos, até a separação dolorosa
e o reencontro. Mas, antes de tudo, trata do conflito vivido por uma
moçambicana entre o mundo moderno e o mundo tradicional, a África arcaica, seus
valores eminentemente machistas em que a mulher só existe para servir ao homem
e constituir seu objeto de desejo.
Depois de casada e bem casada,
Sarnau vê Mwando reaparecer e vive outro romance. Perseguidos, acabam de novo
separando-se. Mwando, depois de se envolver com a mulher de um sipaio
(soldado), foi deportado para Angola, onde passou quinze anos a plantar cana e
café. Um filho de Sarnau, gerado por Mwando enquanto ela era rainha, acaba
coroado rei, depois da morte do presumível pai, enquanto a mãe é obrigada a
cumprir um destino de prostituição para sobreviver.
Este é um livro feminista, mas
feminista à maneira africana: não é uma obra que desafie o estatuto da mulher
africana ou moçambicana. Aliás, usar termos como africana e moçambicana é
correr o risco das generalizações. No próprio Moçambique, há flagrantes
diferenças: o Norte é uma região matriarcal, onde as mulheres têm mais
liberdade, enquanto o Sul e o Centro são regiões patriarcais, extremamente
machistas. E a narrativa de Balada de
amor ao vento ocorre em Gaza, a mais machista de Moçambique, onde a mulher,
além de cozinhar e lavar, para servir uma refeição ao marido tem de fazê-lo de
joelhos.
V
Portanto, este livro traz o olhar do
feminismo negro, que é diferente do feminismo branco, porque muito mais
trágico. Ou alguém duvida que a mulher negra sempre foi muito mais oprimida e
massacrada que a branca, que vive do suor de seu próprio rosto há muito mais
tempo, que responde por sua própria família desde épocas imemoriais, embora
fuja à luz da razão discutir gradações de violência?
Basta ler Barrocas famílias: vida familiar em Minas Gerais no século XVIII,
de Luciano Figueiredo, para se perceber que o papel da mulher – e, mais ainda,
da mulher negra – sempre foi esquecido nos livros de História do Brasil, como
se a colonização e a ocupação do território tivessem resultado apenas da ação
do homem (FIGUEIREDO, 1997, p.16). E que teriam sido raras as mulheres européias
que migraram para o Brasil e para a América hispânica, até porque nos séculos
XVI, XVII e ainda XVIII havia muitas restrições à presença feminina a bordo de
embarcações.
E, portanto, foram indígenas as mulheres
que acolheram o afeto não só dos primeiros colonizadores como de tantos outros
que continuaram a chegar ao Novo Mundo, bem como o fizeram as africanas e as
miscigenadas, anos mais tarde, constituindo uniões consensuais e o concubinato,
práticas contra as quais de pouco valia o pífio combate moralizante empreendido
pela Igreja. Foi dessa população mestiça que nasceu, inclusive, a elite econômica
brasileira que nunca foi branca, embora sempre tenha procurado se passar por
tal.
Por isso, as poucas mulheres
idealizadas por nossa poesia arcádica oitocentista, como Maria Dorotéia
Joaquina de Seixas, a Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga, e Bárbara
Eliodora, de Alvarenga Peixoto (1744-1793), só foram incensadas pelo Romantismo
do século XIX porque eram brancas, enquanto a negra Francisca Arcângela
Cardoso, que deu quatro filhos ao mavioso Cláudio Manuel da Costa (1729-1789) e
lhe inspirou vários poemas, está esquecida até hoje.
Tal como na África a mulher negra na
América também buscou suas próprias estratégias de sobrevivência, desempenhou
papéis econômicos, criou os filhos e protagonizou muitas histórias – que, com
certeza, estão à espera do talento de uma Paulina Chiziane brasileira para
contá-las como se conta histórias à beira da fogueira e seguir uma tradição
iniciada pela maranhense Maria Firmina dos Reis (1825-1917), a primeira
romancista negra do Brasil. Adelto
Gonçalves - Brasil
___________________
Adelto Gonçalves (1951) é doutor em
Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona
Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil,
2002) e Bocage – o Perfil Perdido
(Lisboa, Caminho, 2003). E-mail:
marilizadelto@uol.com.br
(*)
Publicado no livro Passagens para o
Índico: encontros brasileiros com a literatura moçambicana, de Rita Chaves
e Tania Macêdo (organizadoras). Maputo: Marimbique Conteúdos e Publicações, 2012, pp.
33-41.
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Lisboa: Caminho, 2003.
______________.
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Lisboa: Caminho, 2002.
______________.
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Caminho, 2008.
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O sétimo juramento. Lisboa: Caminho, 2000.
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Acesso em: 17abr2010>.
CORREA,
Eloisa Porto, 2004. “A trajetória
descendente do amante viciado, tirano, sádico e manipulador em Niketche de
Paulina Chiziane”. Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos. <Disponível
em: www.filologia.org.br./ixcnlf/2/04/.htm> Acesso em: 17abr2010.
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