Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Eusébio

“A Casa do Eusébio”
  
“Sempre pensei que a casa do Eusébio fosse diferente de todas as outras casas de outros habitantes do Bairro da Mafalala, porque se tratava de um moçambicano cuja grandeza havia ultrapassado todas as fronteiras. Sempre pensei que a casa do Eusébio, ou se se preferir, a casa onde ele e mais os outros irmãos vieram ao mundo, tivesse essa importância que em outros lugares do mundo se outorga às casas onde nasceram as grandes figuras nacionais. Sempre pensei que a casa do Eusébio fosse diferente da casa de um simples candongueiro, de um funcionário público de terceira categoria, de um bate-chapas, ou de um barbeiro. Sempre pensei que a casa do Eusébio fosse apenas igual à casa do Eusébio. Estava enganado. Porque na verdade ela não se assemelha a nenhum museu, não tem linhas góticas especiais que o diferenciem das casas comuns, não possui jardins longos, grades intransponíveis, cães a ladrar de manhã à noite, guardas atentos às movimentações estranhas capazes de importunar a solenidade do lugar, visitantes a percorrer a casa feita museu, obviamente desejosos de conhecer quem foi esse cidadão da Mafalala que através dos seus pés de ouro havia colocado Moçambique na boca do mundo.

A casa do Eusébio é uma simples casa de madeira e zinco, ao bom estilo da época em que foi construída. Deve ter sido uma vivenda bonita. Deve ter sido o orgulho dos que a ergueram. Deve ter sido a alegria dos que ali nasceram. Hoje, porém, assemelha-se a uma casa fantasma, cansada, pronta a desabar ao leve sopro do vento. Atrás, no quintal, o capim se ergue, verde e altivo, encorajado pela terra rica do lugar e pela inércia dos que lá habitam.

Ao olhar a casa onde nasceu um dos melhores futebolistas do mundo senti uma profunda desolação, porque a casa do cidadão Eusébio da Silva Ferreira, ao contrário das casas de outras grandes figuras universais, feitas lugares de culto, corria o desagradável risco de se transformar numa casa anónima, frágil, vulnerável às intempéries da natureza, susceptível de qualquer demolição por imposição de uma distraída ordem camarária. Aquela casa de madeira e zinco com o número 208, situada numa rua cujo nome me escapa à memória, não passa, hoje, duma triste caricatura da nossa pobreza interior, distanciando-se das casas de outras figuras que se notabilizaram pelo mundo fora. Não se assemelhava, por exemplo, àquela outra pertencente a um grande escritor universal chamado Ernest Hemingway, construída ao estilo colonial espanhol na metade do século XIX, cercada de jardins repletos de plantas tropicais, piscina e outras coisas que atraem a atenção dos estudiosos que se deslocam à casa onde Hemingway escreveu clássicos como “Adeus às Armas”, “Ter ou Não Ter” e “Por Quem os Sinos Dobram”.  A casa de Eusébio nada tem a ver com a casa do Jorge Amado, escritor baiano, que abriga uma exposição permanente sobre a vida e a obra daquele que é considerado um dos maiores escritores brasileiros de sempre, casa onde se encontram expostas fotografias, painéis, prémios disto e daquilo, condecorações e coisas que tais.

Nos tempos que correm é cada vez mais crescente o número de países que fazem questão em perpetuar a imagem dos seus grandes ídolos, ressuscitando o lugar onde nasceram, colocando-o para sempre para a história. Três Corações, cidade de sul de Minas Gerais que se orgulha de ser o berço do futebolista Pelé, e que viu o rei crescer e transformar-se no melhor jogador da história do futebol, pretende recuperar o amplo terreno onde existiu a casa do rei, na antiga rua 13, actual Rua Edson Arantes de Nascimento Pelé, transformando-a num lugar de história e de recordações. E nós, o que pensamos acerca da casa do fabuloso menino da Mafalala? Não será este o tempo de transformar aquela débil vivenda num importante museu sobre Eusébio, isto é, sobre o futebol moçambicano? Creio que a concretização desta vontade deve contar com a anuência do Pantera Negra e da imprescindível disponibilidade da família do futebolista, depositário, afinal, do imóvel e da história que encerra. Depois, obviamente, deve contar com a boa vontade do Estado nessa sua delicada responsabilidade oficial de patrono de projectos com inserção sócio-cultural . Porque ele, o Eusébio da Silva Ferreira, apesar dessa longa diáspora em terras portuguesas, pertence a este chão e é um incontornável  ícone, tal como o poeta Craveirinha, o pintor Malangatana, ou mesmo o músico e compositor Fani Mpfumu. Naturalmente que estamos perante um desejo com um alcance cultural profundo, porque se trata de um acto de preservação histórica, numa altura em que o “resgate da memória” se tornou num dos temas preferidos nas conversas de todas as esquinas. Para as gerações que hão-de vir depois da nossa, uma Casa do Eusébio, isto é, um museu, pode vir a ter um significado muito mais importante que todas as biografias que venham a ser escritas sobre o Pantera Negra. Vamos pensar nisso. Eusébio o merece. Mafalala também.” Marcelo Panguana – Moçambique  in “O País”


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