I
Foi o crítico literário e
filósofo da linguagem russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) quem, nos anos 20 do século
XX, empregou o conceito de polifonia, então um termo mais utilizado em
discussões teóricas sobre música, para analisar a obra de Fiódor Dostoiévski
(1821-1881), o que o fez revolucionariamente em Problemas da poética de Dostoiévski (São Paulo, Forense, 2010) e Questões de literatura e de estética
(São Paulo, Hucitec, 2010), ao afirmar que a literatura, mais especificamente o
romance, podia colocar em jogo uma multiplicidade de vozes ideologicamente
distintas, que resistiam ao discurso autoral.
O mesmo arcabouço teórico
pode ser utilizado para definir como texto polifônico Minha querida Beirute (Goiânia, Editora Kelps, 2012), o sexto
romance de Miguel Jorge (1933), autor nascido em Mato Grosso do Sul,
mas radicado desde criança em Goiás, dono de vasta obra, que inclui mais de 30
livros de poemas, romances, novelas infanto-juvenis e contos, além de ensaios e
peças de teatro, que lhe renderam várias premiações e o levaram a ser incluído
no Dictionary of International Biography,
Twenty-Third Edition, da Inglaterra, honraria rara para um escritor
brasileiro.
Essa filiação à definição
bakhtiniana já havia sido percebida pela professora Moema de Castro e Silva
Olival, em seu recente livro A literatura
brasileira e a cultura árabe (Goiânia, Editora Kelps, 2015), no qual estuda
livros de autores descendentes de libaneses, entre os quais os de Miguel Jorge,
como Veias e vinhos (1982), Nos ombros do cão (1991) e Pão cozido debaixo de brasa (1997),
trilogia urbana centrada em Goiânia, O
Deus da hora e da noite (2008), dedicando, porém, a maior parte (48 páginas)
de sua análise à Minha querida Beirute,
ao percorrer detidamente cada um dos seus 36 capítulos.
Para Moema Olival, Miguel
Jorge, a cada capítulo de Minha querida
Beirute, acresce “mudanças de foco, de percepção da realidade, que, na
proliferação de vozes diversas, nos fornecem dado de enriquecimento quanto aos
diversos perfis que nos são apresentados, de tal maneira que o esboço da
personalidade de cada personagem se realize com mais completude”.
Sem dizê-lo explicitamente, a
professora aponta, com percuciência critica, a natureza polifônica do romance,
como diria Bakhtin se tivesse vivido para ler este livro, ainda que em uma
hipotética tradução russa. Enfim, para a professora, Minha querida Beirute constitui um “privilegiado campo de interesse
das disciplinas interdisciplinares que hoje atuam de modo significativo na
leitura crítica dos textos, como psicologia, filosofia, psicanálise,
sociologia, história, uma vez que o grande objeto é o ser humano”.
Já o professor Rogério
Santana, da Universidade Federal de Goiás (UFG), mestre em Literatura Brasileira
pela UFG e doutor em
Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo, no
texto de apresentação que escreveu para este livro, chama a atenção para a definição
bakhtiniana de polifonia, que tornou “compreensível a dimensão das várias vozes
que podem compor uma narrativa”, dizendo que Minha querida Beirute é exatamente um romance polifônico, embora
não seja “feito de vozes que se cruzam, no afã de colocar o leitor em posição
de investigador de narradores”.
Para Santana, Miguel Jorge,
com seu domínio narrativo invejável, permite que o leitor possa sentir e se
beneficiar do deleite estético que o romance reserva no discurso do narrador
distanciado, dos personagens e de outros agentes discursivos “como metáfora do
mundo de ilusão que é a literatura”. Depois de definições tão perfeitas,
difícil é imaginar o leitor destas linhas que não se sinta atraído por conhecer
este romance.
II
Considerando-o então já fisgado,
para auxiliar esse hipotético leitor, é preciso agora contar o que reserva este
livro de Miguel Jorge. Em linhas gerais, conta a história de um anti-herói,
Monsalim, ou apenas Salim, em sua luta para reconstruir sua vida no Brasil,
mais especificamente no Brasil Central, em Goiânia, desde quando, comandante de
um grupo armado num dos muitos combates políticos que se travavam no Líbano,
decidiu deixar a guerra para trás, trazendo consigo no navio a fiel esposa
Nasta e Chalub, Ziad, Narrid, Rachid e Mamede, seus ex-comandados e “figadais
companheiros de aventuras e desventuras”, como observa Carlos Nejar no prefácio
que escreveu para este livro.
Mas não se pense que o leitor
haverá de sentir desde logo simpatia por Monsalim. Pelo contrário. Aos olhos de
hoje, poucos haverão de nutrir bons sentimentos por um homem que constitui o physique du role do libanês bem sucedido
(ao menos no Brasil): machão, falso moralista, ditador em casa com a mulher e a
família e igualmente mandão com os amigos e aqueles que passam a depender de
sua astúcia financeira, ícone da cultura patriarcal, galanteador e libidinoso
nas ruas, cortejado e amante de muitas mulheres, um tipo “com os dedos cheios
de anéis de ouro e grossas correntes no pescoço”, como diria dele uma voz
maledicente da Rua 4, a
das lojinhas dos turcos em
Goiânia. Enfim, o rei do mundo. Obviamente, não se quer dizer
aqui que todo libanês (ou seu descendente) seja assim. Até porque há muitos que
são bons pais de família, fiéis à esposa, solidários com os amigos.
Para compor aquela figura estereotipada,
Miguel Jorge, com invejável mestria, recorre a toda sorte de expediente
literário, ao imaginá-la vítima de uma agressão (pouco esclarecida), com uma
faca atravessada no pescoço, que não pode ser arrancada sob pena de levá-lo de
vez para o outro mundo. A partir desse episódio e de sua luta pela
sobrevivência, o romancista, igualmente descendente de libaneses, em ritmo
cinematográfico, com flashbacks
sucessivos, diálogos, monólogos interiores e oito cartas de ex-amantes,
constrói uma personagem que é facilmente identificada em vários tipos que se
destacaram (e ainda se destacam) na vida nacional e que, bem ou mal, refletem em
parte os valores que desde o berço trouxeram do Líbano.
Como bem observa Carlos Nejar
no prefácio, há, porém, neste livro capítulos de alta voltagem poética e ainda
um texto antológico que chama atenção pela construção de uma personagem que não
é humana, a cachorra Valderéz, que faz lembrar a Baleia, de Vidas Secas, de Graciliano Ramos
(1892-1953), a cadelinha Mila, de Quase
memória, de Carlos Heitor Cony (1926), e Os bichos, de Miguel Torga (1907-1995).
III
Miguel Jorge, poeta,
romancista, contista, dramaturgo, cronista, ensaísta e roteirista, nasceu em Campo Grande-MS,
mas cedo se mudou com seus pais comerciantes para a cidade de Inhumas, em Goiás,
onde fez o curso primário. Cursou o ginásio em Goiânia e terminou o científico
no colégio Marconi, em Belo Horizonte. Formou-se em Farmácia e
Bioquímica pela Universidade Federal de Minas Gerais, Direito e Letras
Vernáculas pela Universidade Católica de Goiás, lecionou Farmacotécnica na
Faculdade de Farmácia da UFG e Literatura Brasileira no Departamento de Letras
da Universidade Católica de Goiás.
Foi um dos fundadores do Grupo
de Escritores Novos (GEN) e seu presidente por duas vezes. Também foi por duas
vezes presidente da União Brasileira de Escritores (UBE), seção de Goiás.
Dirigiu também por duas vezes o Conselho Estadual de Cultura de Goiás e é
membro da Academia Goiana de Letras.
Estreou com Antes do túnel, contos (Goiânia: Editora
da UFG, l967). Entre seus últimos livros, estão O Deus da hora e da noite, romance (Goiânia: Editora Kelps, 2008); Dias pequenos: de como as mulheres atraem
seus maridos, comédia em um ato; As confissões
da senhora Lydia, drama em um ato (Prefeitura de Goiânia, Editora Kelps,
2010); e De ouro em ouro, edição que
contém Livro de poemas, com ilustrações
do pintor Roos e CD com poemas declamados pelo próprio autor (Casa Brasil de
Cultura, 2010).
Entre os prêmios que conquistou
estão o ABCA para o romance Veias e vinhos
(1982); Machado de Assis da Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro para o romance Pão
cozido debaixo de brasa (1997), Prêmio de Poesia Hugo de Carvalho Ramos da
UBE-GO e Secretaria Municipal de Cultura (1989) para Profugus, Prêmio de Poesia Hugo de Carvalho Ramos da UBE-GO e Secretaria
Municipal de Cultura (1998) para Calada nudez
(l998) e 2º Prêmio Centro-Oeste da Funarte para Matilda, peça de teatro.
Escreveu com o diretor João
Batista de Andrade o roteiro para o longa-metragem Veias e vinhos, baseado em seu romance, filmado em São Paulo, de abril a
maio de 2004 e lançado no mercado em 2006. Seus textos sobre artes visuais
estão inseridos, na grande maioria, no livro Da caverna ao museu: dicionário das artes plásticas em Goiás, de
Amaury Menezes, editado pela Fundação Cultural Pedro Ludovico Teixeira, de
Goiânia. Adelto Gonçalves - Brasil
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Minha querida Beirute de Miguel
Jorge, com prefácio de Carlos Nejar e apresentação de Rogério Santana. Goiânia:
Editora Kelps, 634 págs., 2012, R$ 29,90. E-mail: migueljorgeescritor@gmail.com
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Adelto Gonçalves é doutor
em Literatura
Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de
Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona
brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil,
2002), Bocage – o perfil perdido
(Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio
Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2012), e Direito e Justiça em
Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br