Novo
livro de Maria Estela Guedes reúne ensaios sobre as obras de Maria Azenha
I
Aprofundados
estudos sobre livros que fazem parte da extensa obra de Maria Azenha, talvez a
mais significativa poeta portuguesa contemporânea, é o que o leitor vai
encontrar em Na Casa de Maria Azenha (Lisboa, Edições
Esgotadas, 2025), de Maria Estela Guedes, poeta e ensaísta. De início, a autora
deixa claro que a maior parte dos poemas de Maria Azenha revela
sinais muito fortes de misticismo, de que o seu livro O último rei de
Portugal (Lisboa, Fundação Lusíada, 1992) é um dos mais marcantes exemplos.
Trata-se
de textos curtos, porém reflexivos, opinativos e detalhados, sobre os temas
tratados em poemas da autora, ainda que sem a pretensão de esgotá-los,
explorando-os de forma pessoal e crítica, além de oferecer novas perspectivas
ao leitor. Enfim, são ensaios que convidam o leitor a uma reflexão crítica
sobre temas específicos, indo além da superfície e explorando suas diversas
facetas.
No
primeiro ensaio, “Em trânsito de signos”, em que se refere a onze obras da
autora, Maria Estela ressalta que a poeta faz uma viagem iniciática no mais
místico dos terrenos literários de Portugal, “quer relembrando acontecimentos
notáveis, batalhas, reis, navegadores, heróis e poetas, em mais de uma centena
de textos, quer deixando-se possuir pelo ritmo e cadências de alguns poemas dos
autores invocados”.
Como
observa a ensaísta, neste caso, o título não se refere a dom Manuel II
(1889-1932), o monarca imediatamente antecessor da República Portuguesa, deposto
em 1910, mas ao rei que haverá de vir, segundo a lenda que remonta a dom
Sebastião (1554-1578), o “Desejado”, que foi rei de Portugal a partir de 1557 e
desapareceu na Batalha de Alcácer-Quibir, o que deu origem ao mito do
sebastianismo, ou seja, a crença de que ele, como um pretenso Messias,
retornaria, um dia, para salvar Portugal.
Para
a ensaísta, a poeta sempre esteve muito atenta à iminência de uma catástrofe
mundial, “ao movimento cívico, à guerra, aos resultados desta, em especial em
migrações forçadas que são pretexto para genocídio”. Ela observa que talvez por
isso, por sua experiência da desgraça ser grande, o fazer poético de Maria
Azenha tende para o messianismo, “o que na mística portuguesa corresponde à
crença na vinda de um rei salvador, D. Sebastião”. Também por isso, entende a
ensaísta, o tema do Mal, em modalidades variadas, entre elas a do Holocausto, e
as migrações forçadas que se vê na Europa e no Oriente Médio ocorrem
regularmente nos livros de Maria Azenha.
Ainda
nesse ensaio de abertura, Maria Estela ressalta a oralidade presente na lírica
de Maria Azenha, que se manifesta no interior dos textos. E, entre outros
exemplos, a título de ilustração, observa como a autora reescreve à sua maneira
o poema “O Mostrengo”, de Fernando Pessoa (1888-1935), e a passagem de Os
Lusíadas, de Luís de Camões (c.1520-c.1580) sobre o gigante Adamastor, citando
o poema intitulado “O Cabo das Tormentas”, cujo final é o que segue: Rodou o
Mostrengo, então. Rodou três vezes. / Três vezes mais rodou além de estremo; /
E Deus, da velha Nau, daqueles revezes, / Tornou-se Português. Com Bojador ao
leme.
II
Já
no ensaio “Pequenas histórias”, a ensaísta aborda o livro A loucura
das facas (2021), que reúne poemas escritos à época do
confinamento provocado pela epidemia de covid-19. E constata: “Temos assim uma
névoa de revolta contra Deus, um teto baixo de nuvens negras a pressagiar
desastre, uma atmosfera de tragédias à espreita ao voltarmos a página”. Como
exemplo dessa atmosfera ameaçadora, reproduz os versos do poema “No chão do
medo” em que Maria Azenha recupera a apreensão que sentia à época da infância: “Em
criança tinha muito medo da morte. / Agarrava-me às saias de minha mãe e escondia
os olhos. / Esperava assim que ela se fosse embora / E nunca mais me voltasse a
procurar. / Agora, à noite, os relógios / acordam a transpirar de medo”.
No
ensaio “O tenebrismo d´A casa de ler no escuro”,
a ensaísta volta a constatar que, nesta obra, composta por 33 rápidos poemas, a
autora reafirma “a situação apocalíptica em que se encontram países e nações e
uma Europa que posa desnuda e morta”, com versos que “apelam para a maior
desgraça humanitária da Europa de nossos dias, fulcro de conflitos
internacionais”. E cita breves versos do poema “Migração”: “Limparam nossos
lábios com a poeira do deserto. / Cada um que sai leva as últimas palavras”.
Mais adiante, ainda no mesmo ensaio, Maria Estela
define “A casa de ler no escuro” como “retrato tenebrista do mundo e da Europa
num século XXI que se esperava civilizado de grandes progressos humanitários e
espirituais e não apenas progresso tecnológico”. E conclui que a obra “é a
câmara escura em que a autora vai decifrando os sinais do presente que anunciam
um futuro francamente tenebroso”. Isso, porém, adverte, não significa que não
haja esperança nos poemas de Maria Azenha. E cita o poema “Lesbos” em que “a
esperança que nele rebrilha é a única arma capaz de vencer a catástrofe da
família, do desgoverno, da violência, da guerra e da pobreza: o amor, a
compaixão dos que praticam a misericórdia”. É o que se vê nos versos finais
daquele poema: “Nos confins da terra, / passos / recomeçam, / sem balanço
nem piedade, / a marcha da esperança”.
III
Em outro ensaio, ao analisar “Xeque-mate” (2018),
Maria Estela diz que este livro de guerra não se assemelha a nenhum outro dela,
definindo Maria Azenha como” uma escritora de alta imaginação e com grande
capacidade para se renovar a si mesma”, sem deixar de destacar que nele
permanecem de obras anteriores “a notação de flashes do quotidiano, a
metaforização de tonalidade surrealista, que, ao deslocar atributos de um
objeto para outro de forma radical, pode também provocar o riso”.
No ensaio que encerra o livro, intitulado “No lugar
do outro”, Maria Estela destaca a capacidade da poeta de assumir os dramas das
pessoas que a cercam, ao “deixar-se possuir pela alma alheia”. E conta, com a
devida autorização da autora, que Maria Azenha em seu mais recente trabalho, “A
Casa da Memória” (2024), de certo modo, repete alguns casos já tratados
pontualmente em obras anteriores, que foram inspirados na própria atividade da
autora como atendente de uma linha telefônica de ajuda e apoio emocional a
pessoas emocionalmente fragilizadas, ou seja, um trabalho de prevenção ao
suicídio. E lembra que Maria Azenha, como adepta do movimento filosófico e
esotérico Rosa-Cruz, “vem de há muito ajudando pessoas em situações difíceis”.
Daí também a presença da Alquimia em várias obras da autora.
A ensaísta cita ainda o poema “A torre do silêncio”
que, ao contrário da maior parte dos outros, inspirados por conversas, faz uma
homenagem ao silêncio, “como se existissem dois mundos, um exterior, regido
pelas armas, e outro de tormento interior, o do silêncio”: “Não ouve os
tiros da noite / nem aqueles que mais amou. / Ficou na Torre do Silêncio / no
quarto sagrado da Morte, onde mais ninguém entrou”.
Do livro em homenagem a Maria Azenha, consta ainda
entrevista que a autora fez com a poeta em que esta diz que a poesia é o seu
“modo de respirar através de um espaço estético, de um espaço de liberdade: um
espaço de reinvenção”.
IV
Maria Azenha (1945), nascida em Coimbra, licenciou-se
em Ciências Matemáticas pela Universidade de Coimbra. Exerceu funções docentes
nas Universidades de Coimbra, Évora e Lisboa. Desempenhou atividade docente no
Quadro de Nomeação Definitiva na Escola de Ensino Artístico António Arroio. É membro
da Associação Portuguesa de Escritores e membro de honra do Núcleo Acadêmico de
Letras e Artes de Lisboa. Frequentou o Conservatório Nacional de Música em
Coimbra e tem participado de vários recitais.
É autora de mais de duas dezenas de obras de poesia.
Estreou em 1987 com Folha móvel (Lisboa, Edições Átrio). Entre os
seus últimos livros, estão: A Casa da Memória (2024),
O Livro do Absurdo (2023), A loucura das
facas (2021), Bosque branco (2020), A mamã por
cima dos telhados e o meu amor
(2019), Xeque-mate (2018), As mãos no fogo
(2017) e A casa de ler no escuro
(2016), todos publicados pela Editora Urutau, de São Paulo, e distribuídos
também na Galiza (Espanha) e em Portugal, além da obra De amor ardem
os bosques (Rio de Janeiro, Editora Jaguatirica, 2018).
Maria Azenha ilustra com poemas as pinturas de Ellys
no seu livro "De Camões a Pessoa - a viagem iniciática", e é autora
ainda de De Camões a Pessoa: a viagem
iniciática (Lisboa, Sete Caminhos, 2006), em que explora com poemas
ilustrativos a influência de Luís Vaz de Camões na obra de Fernando Pessoa. Nesta
obra, sugere uma jornada de aprendizado e transformação em que Pessoa, como
herdeiro da tradição literária portuguesa, busca superar e reinterpretar a obra
de Camões.
Tem poemas publicados em mais de 25 antologias. Seus
versos já foram traduzidos para os idiomas italiano, espanhol e inglês. De
destaque é também o seu trabalho nas artes plásticas, já que, além de pintora
com participação em várias exposições, é autora de textos publicados em livros
de pintores, como Symbolos (2000), de Valdemar Ribeiro. É ainda autora de
O mar atinge-nos (2009), CD em que declama seus
poemas com acompanhamento à guitarra portuguesa.
V
Maria Estela Guedes
(1947), licenciada em Literatura pela Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa em 1978, é membro da Associação Portuguesa de Críticos Literários, da
Associação Portuguesa de Escritores, da Associação InComunidade, da
Sociedade Portuguesa de Autores e do Instituto São Tomás de Aquino. É editora da
plataforma Triplov (www.triplov.pt), um dos mais
significativos sites de divulgação das literaturas de expressão
portuguesa, onde pode ser consultada a maior parte de seu trabalho.
Nasceu em Lamego,
onde mora hoje, mas viveu
na Guiné Bissau de 1956 a 1966, ao tempo do colonialismo que coincidiu também
com o de sua formação pessoal. Reuniu seus poemas evocativos dessa época e de
uma Guiné-Bissau que já não existe no livro Chão de papel (Lisboa, Apenas
Livros, 2009).
Tem vastíssima obra publicada de livros de e sobre
poesia, crítica literária, História e Filosofia das Ciências, em que se
destacam: Herberto Helder, poeta
obscuro (Lisboa, Moraes Editores, 1979), SO2 (Lisboa, Guimarães
Editores, 1980), Eco, pedras rolantes (Lisboa, Ler Editora, 1983), Mário
de Sá Carneiro (Lisboa, Editorial Presença, 1985), À sombra de Orpheu (Lisboa,
Guimarães Editores, 1990), a_maar_gato (Lisboa, Editorial Minerva,
2005), Lápis de carvão (Lisboa, Apenas Livros, 2005), Ofício
das trevas, teatro (Lisboa, Apenas Livros, 2006), A boba –
monólogo em três insónias e um despertador (Lisboa, Apenas Livros, 2006), À
la Carbonara, em co-autoria com J. C. Cabanel e Sílvio Luís Benítez Lopes
(Lisboa, Apenas Livros, 2007), Poesia na Óptica da Óptica (Lisboa,
Apenas Livros, 2008); A obra ao rubro de Herberto Helder (São
Paulo, Escrituras, 2010); Clitóris Clítoris (Cotia SP, Editora Urutau, 2019);
Esta noite dormimos em Tânger
(Cotia-SP, Editora Urutau, 2020); Númeras letras (ARC Edições,
2021); Conversas com Federico
García Lorca (Editora Urutau, 2022), Corpus Corpus –
José Emílio-Nelson & Herberto Helder (Edições Esgotadas, 2024) entre
outros. É autora também de Glu-Glu-Glu, antologia de
poemas editada pela Tesseractum (São Paulo, 2024, e-book).
Está traduzida em romeno por Maria Manuel Chacán, na
obra Dracula draco (Editora Academiei Internationale
Orient-Occident, Curtea de Arges, 2017). Clitóris Clítoris foi
traduzido para espanhol por Berta Lucia Estrada. Dois trabalhos seus foram
levados à cena, O lagarto do âmbar (Fundação
Calouste Gulbenkian, 1987), com direção de Alberto Lopes, e A boba
(Teatro Experimental de Cascais, 2008), com direção de Carlos Avilez. Considera
suas obras de referência Herberto Helder, poeta obscuro
e A obra ao rubro de Herberto Helder.
Adelto
Gonçalves - Brasil
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Na Casa de
Maria Azenha de Maria Estela Guedes. Lisboa, Edições Esgotadas Lda., 131
páginas, 15 euros, 2025.
Site: www.edicoesesgotadas.com E-mail: geral@edicoesesgotadas.com
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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP), é autor
de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo
(Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São
Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003; São Paulo,
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras,
2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp,
2015) e Os Vira-latas da Madrugada
(Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP,
LetraSelvagem, 2015), O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na
capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. Escreveu
prefácio para o livro Kenneth Maxwell on Global Trends
(Londres, Robbin Laird, editor, 2024), lançado na Inglaterra. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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