O meu ‘Jeep’
O Jeep
foi o primeiro carro que alguma vez tive em vida. Sempre tive um fraco pelo
Jeep, de preferência descapotável, razão porque cedo fui coleccionando umas
coroas, ou seja, escudos, para adquirir um automóvel daqueles em segunda mão.
Decidi comprá-lo, quando a família Cardina retornou à metrópole. Desgostado de
não poder mais ver a Gorete, o Jeep se me tornou uma consolação.
As minhas poupanças
eram tão poucas, que não me podia dar ao luxo de querer um Jeep dos que havia
nos stands. Não obstante, sentia-me confortado por ter poupado dinheiro para
adquirir o veículo naquelas condições.
O meu Jeep era da geração
Willys. Vendeu-mo o Zé João por cinco escudos. Um preço então pesado para o meu
bolso. Mas paguei-o, porque fosse o que fosse, desacompanhado daquela miúda, mal
me suportava sem aquele Willys.
O meu Jeep era todo pintado
cinzento-metálico, que muitos não colhiam com agrado, mas ainda hoje deve andar
na parada. Desde que o Zé João decidiu pô-lo cá na rua a vender, o
cinzento-metálico tornava o veículo despercebido. O cinzento-metálico era uma
cor que não caía bem à vista de qualquer um. Mas, puxa! Eu queria o Jeep tal
como estava, pois do jeito que ele aparentava herdara a discrição do meu
discreto feitio. Nunca tive inveja ao Peugeot do meu pai ou ao Volkswagen do
meu tio António. Nunca senti a mínima inveja ao Volkswagen branco do Marrupa. O
Volkswagen do Marrupa, com os seus grandes faróis traseiros marcava presença. E
todos os meus amigos de infância o reclamavam como sendo o seu carro da vida.
Pese aquele feitio
pomposo nada me interessava no carro do Marrupa, afora o facto exclusivo dele
ser o padrinho de baptismo do meu irmão. Confesso que bastantes vezes resisti a
ir em boleias alheias, não fosse a obsessão de querer um Jeep em segunda mão
para mim.
Enquanto não tivesse
o negócio arrumado, juro que mal pregava os olhos. Sofri bastante antes que o
Jeep quedasse em minhas mãos. Tive insónias, delírios e alucinações, com algumas
paranóias de permeio, pois o Zé João se fartara de avisar-me que o ia entregar
a outro interessado porque não me mostrava flexível a fechar o negócio.
Qual quê! Qual
carapuça? Era mais chantagem do que outra coisa. O tipo andava teso e sem outro
comprador. Mas a chantagem que me causava tais doenças psíquicas resultava,
porque eu andava apaixonado e já muito antes morria de amores por aquele Jeep,
que pelo tempo que correu o nosso romance portou-se com lealdade, antes de se
decidir ou consentir a partir nas mãos do desconhecido mbava (ndr. ladrão) que mo canou.
Devo explicar que a
minha única fonte imediata de economia poderia ter sido a bolsa da minha mãe.
Mas tive que resistir, sem nunca a ter assaltado. A solução achada terá sido
proceder a desvios de aplicação aos dinheiros que a minha mãe me dava para comprar
merenda, na escola. Desse jeito consegui juntar tostões, centavo a centavo, até
que o Jeep me sorriu.
Quando comprei o Jeep
todo o mundo achou-me esquisito por causa da cor que ostentava. Alguns até chegaram
a tomar que eu me inspirara nas cores das roupas do pai de Kwawenda. Daí
mandei-o pintar de verde na oficina do primo Filipe. De facto, a cor que por ora
ostentava me pareceu mais adequada, porque se confundia com os Jeeps da tropa
colonial. Eram tantos os Jeeps da tropa colonial que se cruzavam pela Rua Condestável,
pois lá pelo Matacuane Macamero havia o quartel. Assim me pareceu uma
alternativa subtil para a ansiada discrição. Os mais velhos diziam que a cor
era politicamente incorrecta porque eram os tais Willis que faziam a caça acelerada
aos turras. Mas eu mal sabia o que eram os turras e muito menos a coisa de
colónia.
Estava preocupado com
a mudança rápida da cor do veículo porque me fartara de andar em boleias. E o
Jeep caiu-me como uma prenda de Natal. O carro tinha um guiador que transpunha
a bagageira. Locomovia-se por tracção humana. Não obstante, me via todo
realizado por ter alcançado o sonho. Após adquiri-lo a minha felicidade foi
tanta que tive que deixar de apertar o cinto nos intervalos de lanche.
O meu Jeep estava em
condições mecânicas de tal maneira que nunca chegara a me envergonhar com avarias
a meio do caminho. Salvo algumas excepções eu parava-o para remetê-lo na
revisão, donde a cada vez saía novinho em folha, a brilhar. Desta forma, muitos
desataram a cobiçá-lo.
Já muita gente quis
vir no meu carro. As miúdas do bairro idem. Pena não as pudesse levar todas,
porque não havia espaço que as pudesse comportar. Para resolver o dilema em que
me encontrava reservei a todos passageiros o meu guarda-cinto, por onde eles
deviam seguir-me pendurados, mesmo empoleirados, até chegarem ao destino, pois dentro
do Jeep, mesmo que fosse com mil diabos, é que não os deixava entrar nunca.
Fosse como fosse,
terá sido aquele Jeep que me transportara em visitas às casas das tias Clara e
Rosa, a ter com os meus primos Rui, Beto, Filipe, Júlia, Nina, Terezinha e
Cipriano, Angito, Tina, Felícia, Udi e Meta, lá para a Rua 7. Terá sido aquele
Jeep todo-terreno que também me levara a sagrar vencedor em provas de ralis, desforrando
e deixando para trás o Mercedes-Benz do Pintinho, o Scania do Fifi, o Mazda do
Gabriel, o Toyota do Remane, todos ainda a cheirar a perfume dos stands. Tornei-me
vaidoso devido as potencialidades do meu carro. Tornei-me vaidoso de tal
maneira que passei a desrespeitar a outras marcas automobilísticas.
Creio que os patrões
das fábricas dos outros carros rivais não gostaram das minhas vendas. Nada
podiam fazer contra mim. Mas os outros amigos um dia acabariam aliando-se e
mandaram os ladrões que fossem roubar o meu Jeep que estava parqueado na
Cooperativa de Consumo 24 de Junho, local para onde a minha mãe me mandara
comprar arroz, açúcar e mais qualquer coisa de que já não me recordo o que terá
sido.
Até hoje não consigo
compor-me da raiva do ladrão que me extraviou o Jeep Willys. Daí me custe
decidir se compro ou não novo carro, pois ainda me demoro a compô-lo com bugigangas
e luzinhas longo alcance e mata-boi (ndr. protecção à frente), como o outro, e
vêem os ladrões mo tirar como o fizeram, sem dó nem piedade. Adelino Timóteo – Moçambique
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AdelinoTimóteo
é escritor, jornalista e pintor. Poesia: “Antologia da Poesia Moçambicana
“Nunca mais é Sábado“, “Viagem à Grécia através da Ilha de Moçambique“ (Prémio
Nacional ANEM),“A Fronteira do Sublime”. Poemas deste livro reunidos em “De Veneza
ao Peito”, e traduzidos para italiano, Antologia "Poesia Sempre",
Biblioteca Nacional (Brasil). “Dos Frutos do Amor e Desamores até à Partida” (Prémio
BCI 2011). Narrativa: Mulungu, A Virgem da
Babilónia, Nação Pária, Não Chora, Carmen.
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