Eça de Queiroz
No dia 16 de agosto
de 1900, Eça de Queiroz morria em Paris, com 55 anos. A notícia repercutiu
fortemente no Brasil. É que Eça não era aqui apenas um romancista de sucesso.
Era já havia tempos a figura idealizada que o jovem Alberto de Oliveira, quando
o viu certa vez no Porto, ficou contemplando como se fosse "um pequeno
deus". De fato, desde pelo menos a publicação de "Os Maias", em
1888, a intelectualidade brasileira parece ter sido acometida, para usar o
termo criado por Monteiro Lobato, por uma "ecite": uma febre ou paixão
intensa por Eça de Queiroz, que vai atravessar, sem perder a força, pelo menos
as duas primeiras décadas deste século.
A especial afeição
brasileira por Eça de Queiroz, porém, parece ser ainda anterior aos anos 80 e
deve-se a um conjunto amplo de motivos. Por um lado, o romancista não aparecia
ao público apenas como o autor de umas tantas obras-primas. Era uma presença
muito mais próxima: um jornalista que escrevia regularmente nos periódicos
brasileiros, opinando sobre os mais diversos assuntos.
De fato, só na
"Gazeta de Notícias", Eça escreveu durante 16 anos seguidos, a partir
de 1880. Além disso, tinha sido um dos jovens rebeldes que, ao lado de Antero
de Quental e Teófilo Braga, se empenharam na denúncia do atraso político, moral
e científico das nações ibéricas: era um dos representantes da já mítica
Geração de 70, iconoclasta e modernizadora. Era também o autor das
"Farpas" (1871-72), em que não só satirizara a sociedade portuguesa
do seu tempo, mas também ironizara cruelmente o imperador do Brasil, D. Pedro
2º, no momento mesmo em que começava a fortalecer-se o republicanismo no país.
Por tudo isso, no
ambiente encharcado de propaganda republicana dos últimos anos do Império e de
propaganda antilusitana nos primeiros anos da República, Eça podia ser visto
como um aliado progressista: um equivalente, para a vida portuguesa sua
contemporânea, do que era o seu amigo Oliveira Martins para o passado dessa
mesma sociedade. Quanto a esse ponto, vale ainda observar não apenas que o
naturalismo foi geralmente assimilado ao positivismo e à ideologia republicana,
mas também que o pensamento de Oliveira Martins ainda em 1902 forneceria a base
de um livro tão importante quanto o "América Latina - Males de
Origem", de Manuel Bonfim. Por outro lado, é certo que Eça de Queiroz era,
sob muitos aspectos, o oposto do outro grande romancista português havia pouco
desaparecido, Camilo Castelo Branco. Camilo representava, para a maioria dos
escritores brasileiros do tempo, o censor caturra, o ciumento corretor da
linguagem utilizada deste lado do Atlântico. Era, além disso, o romancista da
predileção da grande colônia portuguesa, que nele via o seu escritor por
excelência: o que dispunha suas histórias em linguagem e paisagens legitimamente
lusitanas. Eça, por sua vez, exibia uma linguagem muito diferente, de sintaxe
mais direta e de vocabulário menos exuberante, cheia de neologismos e
estrangeirismos, principalmente galicismos. Tão incorreta talvez, pelos
parâmetros de Camilo ou de Castilho, quanto a de Alencar ou de Varela, essa
linguagem simples e ágil não recuava tampouco ante o bom-senso ou as
conveniências e descrevia de modo muito "realista" os vícios que os
primeiros romances do autor visavam a denunciar. "Sórdido como uma página
de Eça de Queiroz!" - era assim que um moralista do tempo insultava um
poema que julgava pernicioso. E foi graças a "O Primo Basílio" que
"realista" e "naturalista" durante um bom tempo foram
sinônimos, para o leitor comum, de repulsivo, indecente ou obsceno. Por tudo
isso, Eça de Queiroz era, de modo convincente, muito moderno e muito
cosmopolita. Mas a substância mais ativa na promoção da "ecite" não
foi nenhuma dessas, e sim a célebre ironia queirosiana, que, depois de "O
Primo Basílio", vai marcar cada vez mais inconfundivelmente os seus
romances, tanto na construção da frase, quanto na composição das personagens.
Diferente da ironia romântica que, tal como aparece em Camilo e mesmo em
Garrett, tem sempre um travo de amargura, a de Eça supõe uma atitude de espírito
de luminosidade constante, um jeito de olhar que ao mesmo tempo promove a
crítica dos costumes e reafirma o afastamento do analista em relação ao objeto
da sua análise. Reconhecemos logo o estilo de Eça em frases simples como, por
exemplo, "encalhado contra o piano, esfregava lentamente as mãos,
esmagando o meu embaraço" ou "a figura de Napoleão sobre rochedos
enfáticos". É a essa ironia, a esse sistemático olhar analítico, tingido
de humor e de ceticismo, que se deve o fato de não haver heróis positivos no
elenco dos protagonistas queirosianos. São sempre ou francamente negativos,
como a Luísa, de "O Primo Basílio", ou o Raposão, de "A
Relíquia", ou ambíguos e esbatidos, como o Gonçalo, de "A Ilustre
Casa de Ramires", ou o Carlos, de "Os Maias". As personagens
secundárias, por sua vez, são usualmente desenhadas com traço mais forte, ou
para rebaixar, por contraste, as principais, ou para proporcionar uma síntese
caricatural, reveladora do ambiente da época retratada no romance.
Figura pomposa
Esse procedimento
produziu tipos inesquecíveis: o Conselheiro Acácio, o poeta romântico Alencar,
a empregada Juliana, o revolucionário e inconsequente João da Ega, entre
outros. Desses, a criação mais popular é, sem dúvida, o Conselheiro de "O
Primo Basílio", que passou a integrar o patrimônio da mitologia e do
vocabulário comum, pois desde os anos 80 do século passado pode-se dizer de
qualquer figura pomposa e vazia que é um "acácio" ou que é uma figura
"acaciana".
Estruturada a partir
desse olhar distanciado e descrente, a narrativa queirosiana não vai firmar o
desenvolvimento do enredo romanesco nas paixões, nem na coerência psicológica
das personagens ou nas determinações fatais à sua liberdade. Pelo contrário,
uma tendência forte do romance de Eça é a de se estruturar em painel mais ou
menos alegórico, composto a partir da construção muito realista de situações
particulares. Disso resulta uma narrativa cuja unidade não provém da
verossimilhança realista do conjunto, mas é construída pelo recurso sistemático
à intertextualidade e às simetrias e espelhamentos na construção dos episódios,
das cenas e das personagens. Resulta também uma voz narrativa que nunca deixa
de enfatizar os aspectos sensórios de cada um deles, destacando o que é mais
ridículo, mais sedutor ou apenas mais plástico em cada momento do romance.
Esse conjunto de
características da ficção queirosiana faz com que sua obra descreva uma curva
que, se tem a sua origem num livro naturalista como "O Crime do Padre
Amaro", rapidamente se afasta desse tipo de discurso e método compositivo,
em direção ao que A.J. Saraiva denominou "impressionismo".
Esse afastamento já é
bastante notável no segundo romance de Eça, "O Primo Basílio". O
primeiro a dar conta da novidade desse texto foi o próprio escritor, que, assim
que o livro saiu, escreveu a Teófilo Braga e fez um longo ato de contrição por
não ter feito um romance ortodoxamente naturalista. Por outro lado, quando o
livro foi publicado no Brasil, Machado de Assis logo notou que as suas
personagens careciam de determinações fortes de qualquer tipo, fossem internas
ou externas, e que o próprio enredo se montava a partir de uma série de
acidentes, de casualidades. A autocrítica de Eça era claramente defensiva e por
isso apresentava como defeito tudo o que fosse fuga ao receituário naturalista.
Já a avaliação de Machado era moralista e se fazia de uma perspectiva
marcadamente romântica. Mas ambas acusavam a existência nesse livro de uma nova
forma de composição, que só ganhará força desse momento em diante na obra do
autor.
Dois anos depois, em
1880, vem a público "O Mandarim", em que se completa o abandono da
maneira naturalista. E após mais oito anos, em 1888, Eça publica "Os
Maias". É o ponto alto da maturidade do romancista, no pleno domínio de
uma maneira própria, e é, também, o ápice da "ecite" no Brasil.
Os dois grandes
livros seguintes já serão póstumos: "A Ilustre Casa de Ramires" e
"A Cidade e as Serras". Em ambos, acentua-se o traço alegórico e o
distanciamento irônico da voz narrativa. Por isso, o primeiro vai ser objeto de
graves reparos por parte dos críticos mais fiéis ao paradigma
romântico/realista, calcado na verossimilhança psicológica e na construção
orgânica da narrativa. A.J. Saraiva, por exemplo, vai escrever que dois
defeitos principais de "A Ilustre Casa" são que a personagem central
é um títere (é a mesma acusação de Machado a Luísa) e que o livro todo "é
pensado, sobreposto e encaixado como as pedras de um edifício".
De fato, desde
"O Primo Basílio", que José Régio considerava o mais bem construído
romance de Eça, o escritor já pratica um tipo de literatura que, sem ser
naturalista, continua a ser anti-romântica e se apresenta afinada com a
evolução do romance europeu, principalmente com o esteticismo de um Huysmans,
para não mencionar ainda outros escritores de grande voga na virada do século e
pouco depois, como Oscar Wilde e Anatole France.
Assim, não é de
estranhar que, para os brasileiros do final do século 19 e começo do 20, Eça
tivesse encarnado adequadamente o ideal de modernidade; que tivesse
representado para os leitores e escritores brasileiros um modelo, em língua
portuguesa, do esforço para superar o velho mundo romântico (que no Brasil se
confundia com o país monárquico, rural e escravocrata) e construir uma nova
cultura: citadina, burguesa e republicana, fundada na instrução e no
discernimento do cidadão médio. Um modelo, enfim, daquilo que era o título de
um conto belíssimo, temperado de ironia e autocrítica, que Eça publicou
originalmente em 1892 na "Gazeta de Notícias" do Rio de Janeiro:
"Civilização". Paulo Franchetti
- Brasil
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Paulo
Franchetti é um crítico literário, escritor e professor brasileiro, titular no
Departamento de Teoria Literária da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp). É mestre pela Unicamp, doutor pela USP e livre-docente pela Unicamp.
Desde 2002, dirige a Editora da Unicamp.
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