Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Macau - Os problemas de identidade e as fragilidades das comunidades macaense e portuguesa

As rápidas alterações que têm ocorrido em Macau nos últimos anos estão a fazer com que as comunidades macaense e portuguesa estejam a sofrer crises de identidade, dizem Carlos Piteira e Vanessa Amaro. Os dois investigadores vão participar num seminário organizado pela Universidade de São José e o Instituto do Oriente do ISCSP-ULisboa. Carlos Piteira, que se foca na comunidade macaense, diz que “Macau está fragilizada e, se Macau está fragilizada, os macaenses também estão fragilizados”. Vanessa Amaro aborda “a crise” dos portugueses, que encaram as mudanças em Macau com “uma certa mágoa”.

Confrontadas com as rápidas alterações que têm ocorrido em Macau nos últimos anos, as comunidades portuguesa e macaense parecem estar a sofrer de uma crise de identidade. A ideia é partilhada por Carlos Piteira e Vanessa Amaro, que vão participar num seminário da série “Bridges” (pontes, na tradução para português), do Xavier Research Centre for Memory and Identity, da Universidade de São José (USJ), organizado em conjunto com o Instituto do Oriente do ISCSP-ULisboa.

O objectivo da iniciativa é “estimular o intercâmbio intelectual entre académicos em Macau (China) e Portugal sobre temas relacionados com a sustentabilidade cultural”, diz a organização, acrescentando que este ano as sessões centram-se em três conceitos-chave: identidade, transições e poder.

Vanessa Amaro vai abordar os problemas da comunidade portuguesa ao longo dos últimos dez anos, com uma intervenção que tem como título “O que se segue para a nossa ‘mobília’? Revisitando o papel da comunidade portuguesa na RAEM na última década”. Já Carlos Piteira vai focar a sua intervenção na comunidade macaense, com uma intervenção intitulada “Fragilidades da Identidade Macaense: Reflexão sobre o tema”.

O desalento sentido pela comunidade portuguesa

Vanessa Amaro, investigadora e professora do Centro de Estudos Portugueses da Universidade Politécnica de Macau (UPM), fala sobre a “mobília” de Macau, metáfora usada para falar sobre a comunidade portuguesa no território. Na sua intervenção, irá actualizar os dados recolhidos entre 2012 e 2015 no âmbito da sua tese de doutoramento, quando falou com 60 portugueses a viver em Macau para perceber quais os desejos e aspirações da comunidade na região.

“Tenho feito uma retrospectiva, tenho revisto os dados recolhidos naquele período e agora estou a voltar a falar com as pessoas e a perguntar o que é que aconteceu com elas nos últimos dez anos, o que aconteceu em Macau, etc”, explica a investigadora em declarações ao Ponto Final, acrescentando que a ideia é “tentar situar qual o lugar da comunidade portuguesa em Macau”. Até porque este “é um momento crítico de transformação da comunidade; há um certo esvaziamento na comunidade e é altura de reflexão sobre o futuro, sobre qual o papel dos portugueses, sobre o que é que podem fazer”.

A primeira constatação a que chegou depois de tentar contactar aqueles que tinha contactado há dez anos foi de que cerca de 60% das pessoas já não vivem em Macau. Vanessa Amaro dá o exemplo de um dos entrevistados que, em 2014 tinha garantido que não iria sair de Macau nem depois de se reformar. Porém, hoje já não vive no território.

Além disso, há um sentimento de mágoa e desalento: “O mais comum é as pessoas que foram embora dizerem que viraram a página. Encerraram, não querem falar sobre Macau e nem sequer sentem saudades, porque a Macau de que eles têm saudades já não existe e não vai voltar a existir nunca mais”. Por outro lado, há um sentimento de perda de influência por parte da comunidade portuguesa em Macau, menos apoio das autoridades, menos médicos portugueses, por exemplo. “Há uma certa mágoa”, sublinha Vanessa Amaro. A investigadora assinala que alguns dos portugueses que abandonaram a região sentiram-se “empurrados” dadas as transformações no território.

Outra característica em comum entre os portugueses que saíram da região nos últimos anos é a dificuldade de ajustamento a uma outra realidade. “Tendem a formar grupos de amigos e de pessoas que viveram em algum momento em Macau. As pessoas saem de Macau, mas Macau não sai delas”, frisa.

Estará a comunidade a sentir uma crise identitária? “Acho que sim. Tem tudo a ver com essas condicionantes, estas pequenas relações com o poder que se vão perdendo, deve-se ao facto de os portugueses não saberem qual é que deve ser o seu papel em Macau neste momento”, responde a investigadora, concluindo que “este esvaziamento da comunidade traz muita fragilidade”.

As fragilidades da comunidade macaense

É precisamente sobre fragilidades que Carlos Piteira vai falar neste seminário. Neste caso, as fragilidades da comunidade macaense que acompanham as fragilidades e as novas configurações de Macau. Mas “fragilidade é diferente de fraqueza”, ressalva o antropólogo e investigador do Instituto do Oriente do ISCSP-ULisboa.

“Esse conceito de fragilidade da comunidade e do grupo étnico dos macaenses tem a ver com a própria fragilidade de Macau. Macau é que se encontra num processo de fragilização relativamente àquilo que quer ser no futuro. Macau está à procura do seu enquadramento nesta nova realidade que é a RAEM e das dinâmicas do seu processo de integração na República Popular da China, nomeadamente com os grandes desafios da Grande Baía, Faixa e Rota, e os pressupostos que isso traz no reenquadramento do papel de Macau enquanto núcleo dessa abordagem”, explica o investigador ao Ponto Final.

“O processo [de integração de Macau na República Popular da China] era para ser lento, gradual, integrativo e se calhar com menos convulsões até 2049. Não tem sido assim. Essa é a questão central, um ponto de ruptura que leva Macau a estar também fragilizado”, nota.

Assim, diz, esta fragilidade é também transportada para a comunidade macaense enquanto etnia. “A fragilidade da identidade dos macaenses está inserida na própria fragilidade da identidade da Macau do futuro”, sublinha. “O que é que Macau vai ser? Qual o seu modo de vida? Aqui é que Macau está fragilizada e, se Macau está fragilizada, os macaenses também estão fragilizados. Vão ter de se reinventar neste novo processo”, aponta o investigador.

“Como é que acha que os macaenses se vão integrar numa nova configuração? Há factores que vão pesar”, diz, dando o exemplo do modo de vida: “O modo de vida da RAEM não é o mesmo que o modo de vida de Macau, durante a governação portuguesa e com aspectos de ligação muito mais directa das lógicas de relacionamento”. Outro aspecto que poderá alterar o futuro de Macau, e consequentemente dos macaenses, é a estrutura populacional da região. “Cada vez menos portugueses, cada vez menos macaenses e cada vez mais chineses”, aponta.

Finalmente, há as mudanças na “ligação da comunidade à portugalidade”. “Há os macaenses que nasceram em Macau até 74, em território português sob administração portuguesa; de 74 a 99 nasceram em território chinês sob administração portuguesa; e depois de 99 nascem em território chinês sob administração chinesa. Os nossos futuros filhos de macaenses vão nascer numa condição territorial, política, jurídica, diferente daquela que foi o nosso processo anterior. Isto é um facto inevitável e isso vai-lhes dar um enquadramento do ponto de vista político-jurídico completamente diferente do que foi a das gerações anteriores”.

Carlos Piteira abordou a proposta de Lok Po, representante de Macau na Assembleia Popular Nacional que defendeu que a comunidade macaense deveria ser integrada na família de etnias chinesas. O antropólogo diz que a proposta “não faz sentido do ponto de vista da essência da comunidade macaense”, já que a comunidade “é um grupo distinto de origem miscigenada e com todo um processo em que basicamente se afirmaram como luso-asiáticos”. André Vinagre – Macau in “Ponto Final”

 

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