Ou
as almas solitárias de Mil Corações Solitários, de Hugo Almeida
Em 1988, fui convidado pela então Fundação Nestlé de
Cultura a participar como jurado do Prêmio Nestlé de Literatura, na época, uma
prestigiosa premiação que, ao longo dos anos, veio revelando grandes autores da
poesia e da prosa brasileiras.
Quando recebi em casa mais ou menos 150 originais
datilografados (à época, os escritores ainda usavam máquina de escrever), que
enchiam parte da minúscula sala de meu apartamento de então, fui tomado pelo
desânimo. Tinha que partilhar meu escasso e precioso tempo de professor e
escritor com a que me pareceu penosa tarefa de escolher entre tantas histórias
aquelas que mereceriam os prêmios de primeiro, segundo e terceiro lugares do
concurso. Assentado em almofadas, lápis a mão, comecei a trabalhar, lendo com
rigor os originais e fazendo anotações críticas à margem dos textos, para que
pudesse me orientar ao fim do processo de análise. Não demorou para eu perceber
que a maioria dos livros era ruim, não só pela escrita tatibitate, sem obedecer
às regras elementares da gramática, mas também pelo conteúdo do que se
pretendia narrar.
Já ao ler as primeiras linhas de alguns deles, veio-me à
cabeça a famosa e irônica frase de Paul Valéry sobre o incipit dos maus
romances, que costumavam se iniciar com “A marquesa saiu às cinco horas”,
determinando assim o que se esperar do resto, enquanto promessa de má e
superada literatura. De fato, aqueles romances que devia ler, para poder
escolher os três melhores, primavam, na maioria dos casos, pela ruindade: eram
histórias de redenção pelo amor, como as que se estampavam nas páginas da
revista Sabrina, uma publicação que se vendia em bancas de jornal, de
amor erótico, primando pelos palavrões a dar ênfase ao sexo pelo sexo, como nos
piores filmes da série Emanuelle, eram narrativas regionalistas, com
fundo social, emulando, por baixo, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz. E
todos demonstrando a falta de cuidado com a linguagem – o sujeito no plural e o
verbo do predicado no singular, frases nominais irrompendo do nada nas
narrativas, a presença obsedante da primeira pessoa, em confissões de estados de
espírito particulares.
Em sendo assim, foi fácil me livrar de um autêntico lixo,
bastando pôr os olhos na primeira frase “Era um dia ensolarado...”, “Jennifer
sentia-se muito só naquele entardecer...”, “O caboclo cavoucou com o enxó o
solo árido da catinga...”. E a pilha dos descartáveis ia aumentando num canto
da saleta, enquanto, sobre a mesa, em destaque, alguns poucos descansavam. Mas
nada que entusiasmasse, até que...
...até que fui premiado com a leitura de um romance com o
original título Mil Corações Solitários e o pseudônimo Nathanael e cujo
início indiciava, ao mesmo tempo, uma síntese e uma busca:
Teia
Níobe
olha a mão, Ana esquece o filho, René ergue a xícara, Gamaliel dorme. Zero grau.
Uma
receita
Primeira
frase a mais custosa. (Pudesse manejar bico de pássaro, graveto por graveto.)
Talvez seja esta a palavra: the key. É como se, vítima à frente, se
ofertasse boa semente de uma conversa comprida, sem adeus. Desta forma, o sopro
de um texto, duma história. Um tigre comparou o título a uma piscada ao leitor.
Perfeito. Só que, após a imagem, vem o verbo. Sedução concluída? Falta pouco.
Título e primeira frase: ou se mergulha naquilo ou larga de vez. (Mil Corações Solitários. 4ª ed., São
Paulo: Sinete, 2025, p. 15)
Mas o que me deixou bastante impressionado também foi o
fato de o primeiro capítulo ser intitulado com a expressão “É o fim”,
apontando para uma aparente idiossincrasia em que, temporalmente, no início da
história, já se prenunciava o seu término. Ainda: como sempre foi de praxe em
meu hábito de leitura, movido pela curiosidade, procurei folhear o romance, ao
acaso, e notei que este era feito de módulos narrativos numerados, alguns
curtíssimos, formados de uma só frase, outros mais longos, fragmentos de diálogos
soltos, missivas em itálico, talvez para acentuar seu caráter bem pessoal. Mais
adiante, com a leitura rigorosa do livro, na ordem em que se me oferecia, percebi
que a coisa era mais complexa, ou seja, a narrativa era costurada, obedecendo
ao princípio de uma narração “sem fio”, como nos melhores e mais inspiradores
experimentos surrealistas.
Mesmo assim, logo me inteirei do chamado plot, do
enredo propriamente dito, que tem sua abertura concentrada numa família,
formada pela inocente, e por causa disso mesmo, ignorante Níobe, casada por
imposição do pai com Gamaliel Carvalho, um homem taciturno, seco, fechado em
seus hábitos. Desse conluio sem amor, nascem os filhos Ana e René, que
contracenam com outros personagens que terão sua importância à medida que a
história se desenvolve. Habitando um país desumano e sem identidade, andam por
cidades, onde os viadutos foram construídos apenas para que os carros passem
embaixo, num flagrante desvio de função, em que o humano sempre fica em
secundaríssimo plano. “Divorciados da realidade, da vida nacional e do mundo,
da questão política. Nada entendem, nada conhecem.” O que os leva a serem
apenas sobreviventes, viajantes solitários e sem rumo.
Mas o curioso é que a trama não flui placidamente como as
águas correntes de um rio. Pelo contrário, o que o leitor tem diante de si é
uma sequência de peças de um jogo, em que os espaços em branco, junto com os
espaços manchados da escrita, exigem ser preenchidos não só pelo autor da obra
(afinal quem é o autor da obra?), mas pelo(s) leitor(es) que, para aplacar a
solidão oferta pelo ato da leitura: – eu – livro – outros eus – deseja(m)
comungar com sujeitos diferentes de sua(s) própria(s) pessoa(s), para ter uma
compreensão mais abrangente – e, portanto, mais significativa – do mundo. Tais
sujeitos seriam os responsáveis por revelar e sobrevalorizar a transcendência
das narrativas, que existem apenas para dar sentido ao caos da realidade, do
mundo. E esse caos é representado, entre outras coisas, pelo background do
romance, o pano de fundo, no caso, os idos do Golpe de 64, entrevisto, em meio
a fragmentos, mas mostrando sua importância, ao interferir de maneira oblíqua e
dissimulada nas vidas desencontradas dos personagens.
É bem verdade que este sempre foi o pressuposto das
narrativas de todos os tempos, somente que, na tradição literária convencional,
esta tentativa de dar sentido ao sem-sentido, à desordem, implicou criar um
constructo de tal maneira organizado que entre a realidade e sua representação
cavou-se um abismo, pois, nelas, domesticava-se a vida, a tal ponto que se reduziam
ou se aprisionavam as pulsões fundamentais para a compreensão do humano. Vem
daí que, na modernidade, o que se procurou fazer foi pôr de lado a narração
psicológica ou realista, para dar força, volume a essas pulsões. Um autor como
Édouard Dujardin, em 1888, em seu romance Les lauriers sont coupés (Os
loureiros estão cortados), que teve grande influência sobre Joyce, foi quem
primeiro utilizou do fluxo de consciência, para representar o que se passaria
no complexo mundo da consciência dos seres. Daí as frases aparentemente soltas,
em longos solilóquios, procurando expressar o caos da interioridade. Mais
adiante, Proust, com sua busca do tempo perdido, Joyce, com sua labiríntica
reconstrução da cidade mítica de Dublin, Virgínia Woolf, com o ensimesmamento
da sua Miss Dalloway, buscando aprisionar os momentos iluminados da existência,
levarão bem adiante esses experimentos, influenciando uma vasta gama de
escritores da Europa e das Américas.
Nessa superação do tradicional/convencional, acontece uma
extraordinária revolução, pois os autores agora não visam a encarcerar o fluxo
vital para mostrá-lo como uma borboleta presa a um alfinete, mas, sim,
aproximar o leitor o máximo dele, como se o contemplasse no momento mesmo de
sua eclosão. É o que se nota de modo exemplar no monólogo de Molly Bloom, de Ulisses,
em que a figura feminina, num longo fluxo, tenta libertar a sua voz da
prisão do narrador em terceira pessoa, fazendo com que o leitor a ouça ao vivo,
no momento em que a parte consciente da mulher cede espaço para a manifestação
de seus desejos secretos e volições. Dá-se desse modo a recuperação de
instantes mágicos, autênticas epifanias, que revelam o que há de mais essencial
numa existência, que o peso material da existência, somando-se à tirania da
consciência, da razão, sufocou ou tentou sufocar. É o que acontece com o jovem de
Em Busca do Tempo Perdido, que tenta recuperar um tempo mágico,
imemorial, não pelo esforço da memória voluntária, mas da involuntária que traz
à tona da vida puras sensações – visuais, olfativas, táteis – que o ajudam a
reerguer o iluminado palácio das recordações. E o elemento deflagrador disso
tudo é uma prosaica madeleine mergulhada numa xícara de chá, cujo gosto,
ligado ao olfato, faz que o diáfano passado se imponha vivamente ao personagem ancorado
num presente anódino.
Inúmeras são as técnicas romanescas utilizadas na
modernidade para representar essas tendências, a mais conhecida de todas, como
vimos, o stream of counsciosness. Mas podemos pensar também na questão
da polifonia, vozes que, substituindo o narrador princeps, propõem-se a expor
diferentes pontos de vistas, conflitantes ou não, dos acontecimentos e também
diferentes linguagens, desde o discurso elevado até o popular e o chulo e,
sobretudo, o diálogo entre diversos autores, com a apropriação “indébita” de
discursos, como acontece no chamado dialogismo. Nesse último recurso,
percebe-se que os autores não se fecham mais em ilhas, pois, por vezes,
procuram estabelecer frutíferos diálogos entre autores da tradição clássica e
moderna, por meio de empréstimos de estilemas e mesmo de temas. É o caso, entre
muitos outros, do escritor português Almeida Faria que, exemplarmente,
incorpora em seu discurso narrativo versos ou reflexões de Camões, Bocage,
Drummond e Guimarães Rosa, na composição da sua Tetralogia Lusitana.
O romancista e contista Hugo Almeida talvez seja o escritor
brasileiro que manifesta em sua obra estes sinais mais visíveis da ruptura do
convencional na prosa, de certa forma, dando continuidade aos experimentos
geniais de Osman Lins, em Nove, Novena e Avalovara. Com este
romance inovador, Mil Corações Solitários, ao emular com ironia a
escrita sentimental dos folhetins, irrompeu no panorama da literatura
brasileira moderna com audácia e coragem, dando assim um vigor novo à nossa
ficção. Seu romance, como também em Vale das Ameixas (Sinete, 2024), ao
pôr de lado os traços mais confortáveis da tradição – o enredo linear, a
exploração do tempo cronológico, a descrição estática dos personagens, a
recuperação, por meio de flash-backs, de instantes do passado que tentam
explicar o presente – é composto de uma variada gama de materiais: esboços de narrativas,
diálogos soltos, correio amoroso, cartas, anúncios, notícias de jornal,
descrições cartográficas, questões sobre a Física, e, por isso mesmo, mais
desorienta do que oferece um sentido, na medida em que busca representar em seu
aparente caos o caótico que impera no real.
O título hiperbólico serve para acentuar, enfatizar um
sentimento fundamental do ser humano, qual seja, aquele que entra em
contradição com a essência do homem, no caso, a solidão. O romance de Hugo
trata dela, como se fosse uma entidade ou uma divindade, ao condensar, em vidas
exemplares, o esfacelamento das relações de afetos e, sobremaneira, de amor,
pois, embora seus personagens vivam juntos – em círculos familiares e de
amizade, em organizações de trabalho –, experimentam o ato de ficar a sós em
mais alto grau. Desse modo, a estrutura do romance, em vez de apresentar uma
linha contínua narrativa, apenas registra pequenos quadros, enumerações de
nomes e coisas díspares, descrições cartográficas, que servem para mimetizar
esta separação entre as pessoas. Ao cabo, elas se procuram, sem saber que, ao
fim de seu périplo existencial, terminam por se ausentar de si mesmas, encerradas
nesta Geena, para que foram condenadas ao nascer. Essa falta de comunicação
entre os seres ou a comunicação que se dá com a interferência do ruído, tem sua
manifestação mais elevada nas cartas que Níobe envia a mãe, mesmo depois do que
esta morre. Como não há diálogo possível com o frio e distante marido que lhe
foi imposto e que, inclusive, a submete aos suplícios dos estupros cotidianos,
encontra na mãe morta um eco para sua própria voz que se alteia, para tentar
entender e dar um mínimo significado para uma existência pobre da perspectiva
espiritual e sem a presença gratificante e amorosa do Outro. Nesse desamparo de
Níobe, verifica-se que certas regras da vivência humana acabam sendo
subvertidas, pois, enquanto “a vida é a angústia, o desconhecido. A morte, o
alívio, a revelação”. Daí o fato de ela ter que se corresponder com uma morta,
seu espelho em negro, sua semelhante, sua irmã.
Mas é preciso levar em consideração que não só os
personagens é que experimentam navegar num mar de escolhos, que dificultam o
encontro de um porto, pois também os destinatários do romance enfrentam o mesmo
problema. Movendo-se entre fragmentos, bombardeados por vozes que se sucedem,
se alternam de página para página, deslocam-se os leitores, sem jamais ter o
aporte de uma voz onipresente e onisciente que os oriente, pois ele é coagido a
participar da construção do romance, a preencher os “brancos” entre as manchas
negras, de modo que o equilíbrio da composição se ofereça por meio de sua
imaginação também criadora. E, como se poderá observar, eles terão que pôr de
lado o conforto de ter um guia, uma espécie de Beatriz, para entrar nesse
labirinto de significados, sem a esperança, porém, de chegar ao Paraíso. Puras
sensações, por vezes, é que servem de fio-condutor na narrativa, como no
exemplo da imagem recuperada da avenida Brasil “ – mau cheiro, barulho e calor
– trouxe o deputado à terra”, enquanto, por sua vez, Ana bebe solitária a
paisagem. Aliás, esse adjetivo – “solitária” – se oferece várias vezes ao longo
do romance, como a especificar o que determina o quid do ser humano –
não as experiências iluminadoras e significativas do amor, mas as da solidão
plena, fria, em que diferentes sujeitos procuram o Outro, não para experimentar
sentimentos comuns, mas apenas para negá-lo. E aqui se entende, portanto, a
hipérbole do título em toda sua dimensão: os seres afogam-se na solidão, pois
vivem a vida, sem estímulos ou motivos significativos, o que faz que passem a
ver a existência como fragmentos desassociados ou como um chão composto por
fragmentos de ladrilho, sem unidade e sem o mínimo de transcendência. Álvaro Gomes - Brasil
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Mil Corações Solitários, de Hugo Almeida. 4ª edição. São Paulo: Editora Sinete, 228 páginas, R$ 65,00, 2025.
Site: https://www.editorasinete.com.br
E-mail:
editorasinete@gmail.com
Site
do autor: https://hugoalmeidaescritor.com.br
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Álvaro
Cardoso Gomes é Professor Titular da Universidade
de São Paulo (USP), romancista e crítico literário. Autor dos romances Os rios inumeráveis (1997), Concerto Amazônico (2008), Panarquia (2021) e O evangelho segundo Satã, a sair em breve pela Editora Contra o
Vento, do Grupo Alta Books. Publicou os ensaios A Poesia como Pintura (2015), O
Simbolismo: uma revolução poética (2016) e dezenas de outros livros.
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