Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

sexta-feira, 7 de março de 2025

“Iberê Camargo: um homem valente”, romance-pintura

A escritora Nilma Lacerda inova na biografia romanceada, 

“fricção”entre arte e fatos, do pintor brasileiro


Na entrevista-diálogo com Iberê Camargo (1914-1994), publicada na revista Manchete em janeiro de 1969, incluída no livro Entrevistas (org. de Claire Williams, Rocco, 2007), Clarice Lispector (1920-1977) perguntou ao pintor qual o processo criador de um pintor versus o processo criador de um escritor. A resposta do artista foi simples, cristalina, tranquila: “Suponho, Clarice, que a diferença que existe esteja apenas na diferença de elementos. O pintor usa cor, a tinta, a linha. O escritor usa a frase. Mas o impulso criador deve ser o mesmo. O que você acha? Que é de natureza diversa?”. Clarice concordou com Iberê: “Acho que não: a fonte é a mesma”. 

Em seguida ela disse ter ficado “impressionada com Lúcio Cardoso [1912-1968] que, depois da doença [um AVC paralisou seu lado direito], não conseguia escrever nem falar, mas pintava com a mão esquerda. Perguntei a um médico por que ele não escrevia com a mão esquerda. O médico explicou-me, se é que entendi bem, que no cérebro existe uma parte de onde sai a escritura, e outra de onde sai a pintura”.

Iberê, então, perguntou e respondeu: “Mas ele pintava como escrevia? Não. Pintar é um artesanato, é saber usar os instrumentos. Assim como o escritor luta por criar com a palavra. Não há um caso de um pintor que tenha feito uma obra definitiva na primeira tentativa. Na literatura há?”. Resposta de Clarice: “Não sei, mas talvez Rimbaud”. Mais adiante, a escritora perguntou: “Qual o conselho que você daria aos novos pintores?”. A resposta seguiu a da outra pergunta: “Não se persuadirem de que inventaram a pintura. E você, que conselho daria a novos escritores?”. Clarice: “Trabalhar, trabalhar e trabalhar”. 

Essa introdução de três parágrafos é para começar a tratar de um romance precioso, Iberê Camargo: um homem valente, mescla de pintura e texto, ou texto feito pintura, fruto de longo, paciente e árduo trabalho de uma grande e experiente escritora, Nilma Lacerda (1948, Rio, onde vive), autora de obra consistente e bonita várias vezes premiada, doutora em Letras, professora aposentada na Universidade Federal Fluminense. A editora Mínimo Múltiplo, de Porto Alegre, publicou Um homem valente em 2022, mas nunca é tarde para resenhar um grande livro. A avalanche de publicações dos últimos anos no Brasil, nem sempre de qualidade, tem deixado esquecidas obras raras, valiosas, que não brotam do cotidiano imediato nem abordam (ou abortam) temas do momento, livros quase sempre com linguagem trivial, sem apuro literário, pouco mais do que o estilo apressado do jornalismo. 

O trabalho de Nilma Lacerda é de outra natureza. Ela produz arte. A escritora pintou o livro, lapidada prosa poética. A alma e a obra do pintor flutuam ali, vivas, transfiguradas, um deleite para o leitor. Nilma não teve o privilégio de se encontrar com Iberê Camargo em vida. No entanto, o conheceu a fundo. Visitou e conversou longamente com a viúva dele, Maria Coussirat Camargo (1915-2014), considerada pelo curador e crítico de arte Paulo Herkenhoff (1949) “sombra e luz”, “esteio seguro e sereno” do marido. Nilma Lacerda contou com a bolsa Vitae de Arte em Literatura, concedida em 1998, para conceber Um homem valente. Leu o que de melhor havia sobre ele, pesquisou profundamente sua vida e obra. Mas não se ateve a fatos para escrever o livro. Foi audaciosa, como em todos seus textos. Há muita imaginação, criação, na “fricção” entre arte e vida no romance, que deve ter surpreendido e talvez incomodado muita gente apreciadora de biografias tradicionais. Foi uma mulher valente e talentosa que escreveu e reescreveu, sem pressa, mesmo após o fim da bolsa, esse belo livro desde a capa, pintura de Theo Felizzola com base em fotos de Iberê Camargo feitas por Luiz Eduardo Achutti. 

A exemplo do pintor, tão original que não tinha filiação definida com alguma corrente estética, Nilma Lacerda é uma escritora inovadora, cada livro seu tem linguagem e estrutura diferentes. Ela captou e transformou em alta literatura a personalidade inquieta do pintor e de suas telas que “assustam e encantam”, como diz Ronaldo Brito em Iberê Camargo (DBA, Dórea  Books and Art, 1994). Da mesma forma, as páginas de Nilma Lacerda encantam e assustam. No livro dividido em 14 capítulos, como a Via-Sacra, e um 15º extra, além do pintor transitam outros personagens fortes (Euclédio, Goretti, Jimena, Luigi, Silveira etc.) que gravitam em torno de Iberê, recriação de pessoas reais ou da imaginação da escritora, em situações-limite, angustiantes, outras de plenitude. 

O resultado é de uma beleza prodigiosa, pura literatura, forte, original, encantadora, por vezes bem-humorada. “O vermelho ruge, dizia Lhote. Ríamos sempre com esse trocadilho do mestre. O vermelho é uma língua da pimenta beijando o olho, dizia Matisse. Para Matisse toda cor era o corpo da amante, o preto era para ele o maior dos luxos, cheio de todas as cores dentro, cheio de vermelho, mais que tudo. O vermelho.” Aulas de pintura e arte. Quadros fulgurantes flutuam nas páginas de Um homem valente, tal “um Manifesto do romance pós-moderno”, nas palavras de Silviano Santiago nas orelhas da obra. 

O prefácio é da cantora e compositora Adriana Calcanhotto, que conheceu o pintor e, num êxtase ao ver o carnaval na Marquês de Sapucaí, pensou em Iberê Camargo, “na coisa viva, gestual, urgente, da pintura dele”; e o posfácio (“Apêndice: Iberê, independente”), do editor Lucas Colombo, que relatou episódios marcantes da vida do pintor. “Feito outro grande artista brasileiro que contrariou o senso comum, Machado de Assis, Iberê atingiu o ápice na maturidade”, escreveu Colombo. “E isso se deu com uma nova mudança de rumo [na volta de um período na Itália, tinha deixado o figurativismo e passado a adotar o abstracionismo], talvez potencializada por uma tragédia pessoal. Em 1980, no Rio, ele, que então andava armado, matou um homem ao intervir numa briga de rua. Absolvido no julgamento, retornou a Porto Alegre – e à figuração.” E em tons mais sombrios. O livro traz QR codes de quadros dele, a tecnologia a serviço da arte.

O romance de “fricção” de Nilma Lacerda abre a coleção Tipos Raros da editora Mínimo Múltiplo, que promete obras sobre o cineasta Walter Hugo Khouri (1929-2003), o jornalista Daniel Piza (1970-2011) e o romancista Osman Lins (1924-1978), “figuras incomuns no cenário cultural brasileiro: artistas e intelectuais [...] de espíritos livres”. A exemplo de Iberê Camargo e Nilma Lacerda. Hugo Almeida – Brasil

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Iberê Camargo: Um homem valente, de Nilma Lacerda. Porto Alegre: Mínimo Múltiplo, 2022; 192 páginas, R$ 49,50. https://www.minimomultiplo.com/

Livro disponível na Amazon: https://www.amazon.com.br/Iber%C3%AA-Camargo-Um-homem-valente/dp/6599856004

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Hugo Almeida (1952), jornalista e escritor mineiro residente em São Paulo, doutor em Literatura Brasileira pela USP, é autor de 16 livros, entre eles o romance Vale das ameixas e o ensaio livre A voz dos sinos, sobre o sagrado, a mulher e o amor na obra de Osman Lins, ambos publicados em 2024 pela Sinete. Site do autor: https://hugoalmeidaescritor.com.br


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