A escritora Nilma Lacerda inova na biografia romanceada,
“fricção”entre arte e fatos, do pintor brasileiro
Na entrevista-diálogo com Iberê Camargo (1914-1994), publicada na revista Manchete em janeiro de 1969, incluída no livro Entrevistas (org. de Claire Williams, Rocco, 2007), Clarice Lispector (1920-1977) perguntou ao pintor qual o processo criador de um pintor versus o processo criador de um escritor. A resposta do artista foi simples, cristalina, tranquila: “Suponho, Clarice, que a diferença que existe esteja apenas na diferença de elementos. O pintor usa cor, a tinta, a linha. O escritor usa a frase. Mas o impulso criador deve ser o mesmo. O que você acha? Que é de natureza diversa?”. Clarice concordou com Iberê: “Acho que não: a fonte é a mesma”.
Em seguida ela disse ter ficado “impressionada com Lúcio Cardoso [1912-1968] que, depois da doença [um AVC paralisou seu lado direito], não conseguia escrever nem falar, mas pintava com a mão esquerda. Perguntei a um médico por que ele não escrevia com a mão esquerda. O médico explicou-me, se é que entendi bem, que no cérebro existe uma parte de onde sai a escritura, e outra de onde sai a pintura”.
Iberê, então, perguntou e respondeu: “Mas ele pintava como escrevia? Não. Pintar é um artesanato, é saber usar os instrumentos. Assim como o escritor luta por criar com a palavra. Não há um caso de um pintor que tenha feito uma obra definitiva na primeira tentativa. Na literatura há?”. Resposta de Clarice: “Não sei, mas talvez Rimbaud”. Mais adiante, a escritora perguntou: “Qual o conselho que você daria aos novos pintores?”. A resposta seguiu a da outra pergunta: “Não se persuadirem de que inventaram a pintura. E você, que conselho daria a novos escritores?”. Clarice: “Trabalhar, trabalhar e trabalhar”.
O trabalho de Nilma Lacerda é de outra natureza. Ela produz arte. A escritora pintou o livro, lapidada prosa poética. A alma e a obra do pintor flutuam ali, vivas, transfiguradas, um deleite para o leitor. Nilma não teve o privilégio de se encontrar com Iberê Camargo em vida. No entanto, o conheceu a fundo. Visitou e conversou longamente com a viúva dele, Maria Coussirat Camargo (1915-2014), considerada pelo curador e crítico de arte Paulo Herkenhoff (1949) “sombra e luz”, “esteio seguro e sereno” do marido. Nilma Lacerda contou com a bolsa Vitae de Arte em Literatura, concedida em 1998, para conceber Um homem valente. Leu o que de melhor havia sobre ele, pesquisou profundamente sua vida e obra. Mas não se ateve a fatos para escrever o livro. Foi audaciosa, como em todos seus textos. Há muita imaginação, criação, na “fricção” entre arte e vida no romance, que deve ter surpreendido e talvez incomodado muita gente apreciadora de biografias tradicionais. Foi uma mulher valente e talentosa que escreveu e reescreveu, sem pressa, mesmo após o fim da bolsa, esse belo livro desde a capa, pintura de Theo Felizzola com base em fotos de Iberê Camargo feitas por Luiz Eduardo Achutti.
O resultado é de uma beleza prodigiosa, pura literatura, forte, original, encantadora, por vezes bem-humorada. “O vermelho ruge, dizia Lhote. Ríamos sempre com esse trocadilho do mestre. O vermelho é uma língua da pimenta beijando o olho, dizia Matisse. Para Matisse toda cor era o corpo da amante, o preto era para ele o maior dos luxos, cheio de todas as cores dentro, cheio de vermelho, mais que tudo. O vermelho.” Aulas de pintura e arte. Quadros fulgurantes flutuam nas páginas de Um homem valente, tal “um Manifesto do romance pós-moderno”, nas palavras de Silviano Santiago nas orelhas da obra.
O prefácio é da cantora e compositora Adriana Calcanhotto, que conheceu o pintor e, num êxtase ao ver o carnaval na Marquês de Sapucaí, pensou em Iberê Camargo, “na coisa viva, gestual, urgente, da pintura dele”; e o posfácio (“Apêndice: Iberê, independente”), do editor Lucas Colombo, que relatou episódios marcantes da vida do pintor. “Feito outro grande artista brasileiro que contrariou o senso comum, Machado de Assis, Iberê atingiu o ápice na maturidade”, escreveu Colombo. “E isso se deu com uma nova mudança de rumo [na volta de um período na Itália, tinha deixado o figurativismo e passado a adotar o abstracionismo], talvez potencializada por uma tragédia pessoal. Em 1980, no Rio, ele, que então andava armado, matou um homem ao intervir numa briga de rua. Absolvido no julgamento, retornou a Porto Alegre – e à figuração.” E em tons mais sombrios. O livro traz QR codes de quadros dele, a tecnologia a serviço da arte.
O romance de “fricção” de Nilma Lacerda abre a coleção Tipos Raros da editora Mínimo Múltiplo, que promete obras sobre o cineasta Walter Hugo Khouri (1929-2003), o jornalista Daniel Piza (1970-2011) e o romancista Osman Lins (1924-1978), “figuras incomuns no cenário cultural brasileiro: artistas e intelectuais [...] de espíritos livres”. A exemplo de Iberê Camargo e Nilma Lacerda. Hugo Almeida – Brasil
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Iberê Camargo: Um homem valente, de Nilma Lacerda. Porto Alegre: Mínimo Múltiplo, 2022; 192 páginas, R$ 49,50. https://www.minimomultiplo.com/
Livro disponível na Amazon: https://www.amazon.com.br/Iber%C3%AA-Camargo-Um-homem-valente/dp/6599856004
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Hugo Almeida (1952), jornalista e escritor mineiro residente em São Paulo, doutor em Literatura Brasileira pela USP, é autor de 16 livros, entre eles o romance Vale das ameixas e o ensaio livre A voz dos sinos, sobre o sagrado, a mulher e o amor na obra de Osman Lins, ambos publicados em 2024 pela Sinete. Site do autor: https://hugoalmeidaescritor.com.br
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