Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Bajulação


“Quando vi estampada nas páginas do Jornal de Angola a Lista que discriminava alguns dos beneficiários das residências recentemente construídas na chamada “Cidade do Kilamba”, apliquei-lhe imediatamente o título do filme de Steven Spielberg. Passei a designá-la por “A nossa Lista de Schindler”, mesmo que nada tenha a ver com o drama que inspirou Steven Spielberg a fazer o filme que veio a aumentar ainda mais a sua cotação como realizador de cinema.

As duas Listas surgem em quadros completamente distintos. A Lista de Oskar Schindler, no contexto do terror nazi, quando pretendia salvar vidas humanas dos fornos crematórios. A Lista do Kilamba, quando as autoridades angolanas se propõem acomodar um conjunto de cidadãos, supostamente desacomodados ou deficientemente acomodados.

É por demais evidente que existe um enorme défice de habitações no nosso país e, muito particularmente, em Luanda, fruto da conjugação de um conjunto de factores, entre os quais o crescimento exponencial da população nos últimos anos, a urbanização forçada movida pela guerra e pelo relativo abandono a que foi deixado o interior, também pela política de derrube de habitações precárias para o surgimento de novos espaços urbanos.

No projecto eleitoral de 2008, o MPLA prometeu que, em 4 anos, construiria 1 milhão de novos fogos, criando, assim, a sensação de, em pouco tempo, ter solucionado (ou minorado) o nosso défice habitacional.

De facto, temos estado a assistir ao surgimento de novos bairros (maioritariamente, condomínios) para onde se mudam, sobretudo, indivíduos da chamada classe média. Mas, como a classe média está em crescimento, aumenta também a necessidade de novos alojamentos. Há toda uma mole de gente que almeja um espaço adequado, que busca um relativo conforto, mesmo que se tenha de sujeitar ao incómodo de gastar horas e horas num trânsito infernal.

São também construídas, na nossa cidade, habitações para se alojarem algumas das vítimas de desalojamentos forçados (muitas vezes, violentos). Porém, o ritmo desse desalojamento é incompatível com o realojamento, havendo, por isso, quem fique em situação precária e até mesmo desesperada.

O Projecto da “Cidade do Kilamba” animou expectativas. O modo como se apresentou a sua gestão gerou, porém, frustrações e desencantos, por causa dos preços e das condições de pagamento. Mas, alteraram-se as regras e retomou o curso da esperança em alguns segmentos sociais.

Porém, a “bomba” rebentou com a publicação desta ista da polémica, a que eu agora vou chamando “A Nossa Lista de Schindler”.

Na “Nossa Lista de Schindler” catalogaram-se os “admitidos” a partir de critérios algo estranhos, por grupos. Há até grupos que fazem levantar suspeitas de favorecimento em função de eventuais serviços prestados... Isso retira toa seriedade ao processo de afectação das residências.

Acredito que alguns dos “premiados” venham a fazer negócio com as casas, pois possuem habitação condigna e até mesmo excedentária.

Não se deve aceder a uma casa do Estado por se ser cantor, deputado ou jornalista, professor, médico. Muito menos por se ser religioso. É ridículo aceder-se a uma casa por se ter estado “na campanha”…

Quem decidiu com base em tais critérios cometeu um erro de palmatória. Tê-lo-á cometido, por deformação cultural: habituou-se ao favorecimento, ao tráfico de influências, a considerar o país um xitaca onde só devem ter livre acesso, os amigos e os confrades.

Tenho pena de ter visto na nossa “Lista de Schindler” gente que prezo muito e de quem não tenho suspeitas sobre a sua idoneidade. Foram lá parar por um mero acaso – ou mesmo porque necessitam seriamente de comprar uma casa. Esses eu sei que querem comprar uma casa, e têm o direito de o querer.

Mas vi também na “Nossa Lista de Schindler” os “habitués”, os que estão sempre em todas. Esses, asseguro-vos, voltarão a aparecer numa outra qualquer Lista. Por exemplo, se o governo decidir construir ao lado da “Cidade do Kilamba”, a “Cidade do Kimbanda”, lá estarão eles de novo, feitos mendigos, de mão estendida, a espera de mais uma... E, para isso, para tornar isso possível, repetirão o mesmo exercício em que se especializaram: a bajulação.” Pinto de Andrade – Angola

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Emigração

Cantar de Emigração

Este parte,
aquele parte
e todos, todos se vão…
Galiza, ficas sem homens
Que possam cortar teu pão.

Tens em troca
órfãos e órfãs,
tens campos de solidão,
tens mães que não têm filhos,
filhos que não têm pais.

Coração
que tens e sofre
longas ausências mortais;
viúvas de vivos mortos
que ninguém consolará.

Este parte,
aquele parte
e todos, todos se vão…
Galiza, ficas sem homens
Que possam cortar teu pão.

Rosalia de Castro – Galiza

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Astúrias


“Apesar da desproteçom da língua galego-portuguesa na parte norte-oriental da Galiza, atualmente sob administraçom da Comunidade Autonoma das Astúrias, este ano dous novos colégios (o de Grandas e Boal) começárom a ministrar essa disciplina.

Apesar dessa boa notícia, o próprio governo das astúrias tivo que admitir através da sua diretora de política linguística que os dados  "nom som satisfatórios". A administraçom asturiana empeceu durante anos o ensino da língua galego-portuguesa na parte galega dessa comunidade autónoma, alegando mesmo a existência de umha língua diferente do galego nessa parte, a contramao de todos os argumentos científicos e das instituiçons internacionais.

As más condiçons para a supervivência do galego oriental nom importárom no momento de o governo asturiano cortar neste ano em mais de 60.000 € as ajudas à promoçom das línguas minorizadas no seu território, o que afeta, além de ao galego, o asturiano.

Nem galego nem asturiano tenhem reconhecida a oficialidade no Principado das Astúrias, como sim tem - polo menos teoricamente - o galego na Comunidade Autónoma da Galiza e o asturiano em Portugal (sob o nome de Mirandês).” Galiza In “Diário Liberdade

domingo, 28 de outubro de 2012

Amâncio


                         Uma descida ao inferno da loucura

                                                                 I
            Se como diz a filosofia popular, de médico e louco todos têm um pouco, a um médico louco não há o que acrescentar. Foi a esse personagem insólito que o médico e neurocientista Edson Amâncio recorreu para empreender a sua terceira incursão no romance com Diário de um Médico Louco (Taubaté, LetraSelvagem, 2012). Com um tanto de autobiográfico – que fica claro quando se sabe que o autor realizou nos anos 80 uma viagem a São Petersburgo e Moscou, ainda à época do comunismo –, este relato é um diálogo que Amâncio faz não com a literatura médica a que teve acesso como profissional da área de Saúde, mas como autores que marcaram a sua vida de ficcionista, especialmente Fiodor Dostoievski (1821-1881), a quem estudou em profundidade, até porque atraído pelas ligações que pode haver entre genialidade e esquizofrenia ou até mesmo com o desequilíbrio mental.

            Não por acaso Amâncio recupera neste livro a São Petersburgo que conheceu – ao tempo, chamada de Leningrado –, com o seu Hermitage, o famoso museu, a Fortaleza de São Pedro e São Paulo – onde Dostoievski permaneceu antes de ser encaminhado para o exílio na Sibéria – e, principalmente, o Museu Literário-Memorial dedicado ao autor russo que fica no mesmo apartamento da rua Kuznechny 5/2, onde ele morou, aberto em novembro de 1971, por ocasião do 150º aniversário do nascimento do escritor.

                                                                II
            O relato começa com um clichê da literatura. No caso, é um médico escritor que nada tem de louco que tem acesso a um texto de outrem, que seria outro médico às voltas com distúrbios mentais, um tal Dr.B*. Pelo que se lê da apresentação escrita por esse médico sensato, o tal Dr. B* seria um médico um tanto inconsequente, dado a prazeres etílicos, gastão, acossado por credores e capaz de tomar atitudes tresloucadas.  Por acaso, nos anos 70 e 80, no círculo de médicos contemporâneos do autor na cidade de Santos, havia um médico que pouco fugia desse figurino: um anestesista considerado de mão cheia, mas que, ao final das tardes de domingo, invariavelmente, saía da praia carregado em triunfo, depois de dissipações capazes de fazer corar Baco.

            Resultado de uma mente conturbada, este irregular relato não tem um fio condutor, como reconhece o médico sensato na apresentação, a quem o colega desvairado passou a tarefa de encontrar meios de torná-lo público depois de sua morte. Se não se trata de uma memória de além-túmulo, à semelhança ao Brás Cubas de Machado de Assis (1839-1908), o manuscrito teria sido localizado num baú por familiares do médico tresloucado e traria um apelo do autor ao médico sensato seu amigo para que o publicasse de alguma forma.

            Depois de contar suas primeiras decepções com a medicina, ainda ao tempo de acadêmico na cidade de Santos, o médico relata uma série de acontecimentos insólitos no melhor estilo machadiano em que procura mostrar que os loucos estão na sociedade enquanto os de mente sã estariam nos asilos e manicômios – ou seja, um mundo de sinais invertidos. Em meio ao relato, o médico louco surpreende o leitor com os acontecimentos da viagem que fizera a Rússia, contando em detalhes pequenos incidentes como o hábito que os hotéis moscovitas preservam até hoje de permitir que, de madrugada, vozes femininas langorosas liguem para o quarto do hóspede oferecendo serviços íntimos, esteja o cliente acompanhado ou não da esposa.

            Mais que isso, ler este relato é uma oportunidade de conhecer um pouco de Dostoievski, sobre cuja obra o autor mesmo – não o médico louco – é especialista. Assim, desfilam aos olhos do leitor pormenores do outro museu dedicado a Dostoievski, que fica ao Norte de Moscou, montado na casa onde o romancista passou a sua infância, perto do hospital em que seu pai trabalhava.

                                                               III
            O mundo vivido pelo médico louco de Amâncio é o mundo do pesadelo e do bode expiatório, de cativeiro, dor e confusão, como diria o crítico canadense Northrop Frye (1912-1992). Ou ainda: o mundo do trabalho pervertido ou desolado, de ruínas e de catacumbas, instrumentos de tortura e monumentos à insensatez, que, por sinal, são encontrados no mundo ficcional de Dostoievski. Seja como for, depois da descida ao inferno dostoievskiano, o protagonista do relato retorna à cidade de Santos como a um mundo que morre, tal qual o salmão idoso retorna ao local de sua procriação, para se continuar aqui a citar Frye.

            Como observa o poeta e crítico Ademir Demarchi, doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) e editor da Revista Babel, autor do texto de apresentação, o livro tenta transmitir uma “verdade”, um relato de algo que existiu, mas que, para o leitor, o tempo todo vai se colocando, de fato, como seguidos falseamentos. “A dúvida, assim, perpassa a leitura, afinal em nada se pode compactuar com o narrador, pois as viagens que relata, uma delas à Rússia de Dostoievski, podem ser totalmente falsas, uma vez que fantasias, delírios de um louco que não saiu do entorno de seu quarto, para mencionar Maistre”, diz.

                                                             IV
            Nascido em Sacramento-MG em 1948, Edson Amâncio é médico neurologista estabelecido em Santos  há mais de 30 anos. Graduado, mestre e doutor em Medicina, integra o corpo clínico do Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Sua       estréia literária deu-se com os contos de Em pleno delito (1986), vindo a seguir Cruz das almas (1988), romance, Pergunte ao mineiro (1995), crônicas, e Minha cara impune (1997), romance.

            Em 2006, publicou O homem que fazia chover e outras histórias inventadas pela mente, obra que chamou a atenção da crítica e do público por discorrer sobre as ligações ainda obscuras entre distúrbios psíquicos e genialidade. Nesse livro, o autor comenta casos clínicos bizarros de pacientes comuns e de mentes consideradas geniais como John Nash, Mozart, Machado de Assis, Van Gogh, Flaubert, Virgínia Wolf e Bill Gates. Adelto Gonçalves - Brasil
______________________
DIÁRIO DE UM MÉDICO LOUCO, de Edson Amâncio. Taubaté: Editora LetraSelvagem, 152 págs., 2012, R$ 30,00. E-mail: letraselvagem@letraselvagem.com.br Site: letraselvagem.com.br
________________________

Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br






sábado, 27 de outubro de 2012

Liberal


Ao fim de quase uma década de combate firme pela liberdade e pela democracia, Liberal fecha portas no último dia deste mês. Não porque tenhamos cumprido integralmente a nossa tarefa, não porque nos tenhamos desinteressado deste projecto editorial e da luta sagrada pela liberdade de imprensa. Ou, muito menos, porque achemos que Liberal deixou de ter espaço ou de fazer sentido. Pelo contrário, o jornal ampliou o seu espaço, fez e faz cada vez mais sentido. Liberal é, sem margens para dúvidas, a voz dos que sem ele jamais teriam voz.

Também não se trata de termos sido acometidos por qualquer temor, ou que as tentativas de intimidação e condicionamento dos nossos inimigos tenham abalado minimamente as nossas convicções e frontalidade. Não, pelo contrário, a morte do Liberal ocorre por responsabilidade directa de alguns dos nossos melhores amigos que, ao mesmo tempo que nos dizem fazermos muita falta, contudo nos “asfixiam” não pagando o que nos devem.

Atingimos o limite, já não temos dinheiro para aguentar este barco porque os que nos devem não se dignam pagar-nos. Foi um sonho lindo que chegou ao fim, trazendo à tona uma realidade com que não contávamos. É certo que dos nossos amigos e dos democratas não esperávamos favores. Mas esperávamos colaboração.

Dos nossos inimigos não esperávamos facilidades. E tinham eles razões de sobra para nos perseguirem… como o fizeram ao longo de todos estes anos. Afinal fomos nós que denunciamos os seus truques e as suas trafulhices. Fomos nós que, utilizando uma linguagem terra a terra, estragamos-lhes a festa. Denunciamos os seus nepotismos, os seus roubos, as suas canalhices, as suas mentiras, as suas fraudes, as suas utilizações de bens públicos para proveito próprio ou de amigas… Denunciamos as suas incompetências, os grandes negócios de terrenos, os favores aos amigos, os envolvimentos em actos corruptos, as delapidações da coisa pública, as negociatas com estrangeiros, a utilização dos dinheiros públicos em campanhas eleitorais e em associações amigas… Denunciamos, denunciamos, denunciamos…

No início de Agosto fizemos circular uma carta apelando à solidariedade de pessoas que sabíamos, querendo, nos poderiam ajudar. Novo role de palmadas nas costas, garantias de que o Liberal não iria fechar e promessas de ajuda logo a seguir. Continuamos à espera!

Os democratas, na prática, parecem não considerar importante uma voz consequente que se bata pela democracia, pelo pluralismo e pela liberdade. E quem somos nós para contrariar essa corrente? Da nossa parte tudo fizemos, mesmo quando parecia impossível. Mas há limites intransponíveis. Como diz o poeta, atingimos o zero.

Portanto, caros amigos, a não ser que aconteça um milagre para acorrer a necessidades prementes, Liberal vai deixar de estar online a partir das zero horas de 1 de Novembro, ironicamente, Dia de Todos os Santos.

E é pena que, por tão pouco, se cale uma voz que pugna pela liberdade, pelo pluralismo, pela verdade contra a corrupção, contra o nepotismo, contra a mentira, contra a propaganda…

Quando um jornal morre, quando se cala uma voz insubmissa, a liberdade de imprensa fica mais pobre e mais frágil a democracia. Liberal chega ao fim, mas a luta pela liberdade e pela democracia continua por outros meios, com certeza. Redacção Liberal – Cabo Verde

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Guarani e Kaiowá

Os motivos da luta dos Guarani e Kaiowá pelos territórios tradicionais, tekoha guasu

A pretensão deste artigo é fazer uma breve análise das motivações principais que levaram historicamente e ainda levam hoje os Guarani e Kaiowá a retornarem aos territórios tradicionais, tekoha guasu, de onde foram expulsos e dispersos. Além disso, pretende-se ressaltar os significados vitais dos territórios específicos reivindicados para os povos Guarani e Kaiowá. Esses territórios tradicionais estão localizados nas margens das bacias dos rios situados no cone sul do estado do Mato Grosso do Sul.

Como é sabido, no início da segunda metade do século XX, intensificou-se o processo de colonização oficial do sul do atual estado do Mato Grosso do Sul, e inúmeras comunidades Guarani e Kaiowá foram expropriadas e expulsas de seus territórios antigos, sendo, na maioria dos casos, transferidas e confinadas nas Reservas Indígenas e/ou Postos Indígenas do Serviço de Proteção dos Índios (SPI). Diante desse quadro, iniciativas de articulação e luta de várias lideranças Guarani e Kaiowá para retornar aos antigos territórios começaram a despontar no final da década de 1970.

Os grandes rituais religiosos – jeroky guasu – foram fundamentais para os líderes políticos e religiosos se envolverem nos processos de reocupação e recuperação dos territórios tradicionais específicos. A atuação, ação e valorização dos saberes Guarani e Kaiowá, rituais religiosos e a intermediação dos líderes religiosos nos processos de reocupação e recuperação de parte dos territórios tradicionais foram e são muito importantes para este povo. Nesse sentido, é importante explicitar que as manifestações rituais e religiosas observadas em situações de reocupação de territórios tradicionais expressam uma ação e concepção indígena bem específica e inteiramente desconhecida dos não indígenas, gerando diferentes reações e posições entre as diversas autoridades envolvidas em conflitos fundiários, tais como, fazendeiros e instituições do Estado brasileiro, e Justiça.

É relevante considerar que os Guarani e Kaiowá sentem-se originários dos espaços territoriais reivindicados, e que, nos últimos 30 anos, tendo sido privados da possibilidade de se reassentarem nos seus territórios tradicionais e sobreviver conforme seus usos, costumes e crenças, passaram a investir reiteradamente nas táticas de recuperação deles.

Em relação ao significado vital do território para o povo Guarani e Kaiowá é preciso observar em detalhe o modo específico de relacionamento desses indígenas com os seres invisíveis/guardiões (protetores/deuses) da terra, manifestados através de cantos e rituais diversos dos líderes espirituais. O respeito a esses seres humanos invisíveis e a forma de diálogo com eles marca uma diferença muito importante em relação à percepção e ao uso dos recursos naturais da terra. Este é um aspecto fundamental e determinante do relacionamento dos Guarani e Kaiowá com os territórios antigos. Ao lutar pela recuperação dos territórios, já nas terras reocupadas/retomadas, os Guarani e Kaiowá demonstram e acionam claramente a sua especificidade e condição de pertencimentos aos territórios de origem.

Importa observar que os Guarani e Kaiowá têm ligação e conexão direta com os territórios específicos, considerando-se a si e aos territórios como uma só família, dado que o território específico é visto por esses indígenas como humano. Os Guarani e Kaiowá possuem um forte sentimento religioso de pertencimento ao território específico, fundamentado em termos cosmológicos, sob a compreensão religiosa de que os Guarani e Kaiowá foram destinados, em sua origem como humanidade, a viver, usufruir e a cuidar deste território específico, de modo recíproco e mútuo, portanto eles podem até morrer para salvar a terra. Há um compromisso irrenunciável entre os Guarani e Kaiowá e o guardião/protetor da terra, há pacto de diálogo e apoio recíproco e mútuo: os Guarani e Kaiowá protegem e gerenciam os recursos da terra, por sua vez, o guardião da terra vigia e nutre os Guarani e Kaiowá.

A compreensão dos espaços territoriais pelos Guarani e Kaiowá tem uma concepção cosmológica específica, sui generis, e uma fundamentação cosmológica e histórica que se enraíza em tempos passados. Assim, o processo de luta antiga pela reocupação e recuperação dos territórios tradicionais é uma ação exclusivamente indígena interconectada aos seres do cosmo Guarani e Kaiowá, ou seja, trata-se de uma concepção etnicamente diferenciada, eles sentem profundamente a importância de retornar ao território específico.

Dessa forma, a luta de recuperação das antigas áreas ocupadas pelos Guarani Kaiowá é realizada por meio de retorno ao território, caracterizado como um movimento pacífico e político-religioso exclusivo. Isto é, trata-se de uma articulação política, comunitária e intercomunitária de lideranças religiosas Guarani e Kaiowá.

Nesse contexto, destaca-se o papel da Aty Guasu, uma assembleia geral realizada entre as lideranças políticas e religiosas dos Guarani e Kaiowá a partir do final de 1970. Decisões vitais que afetam a todos, como decisões sobre a recuperação de parte dos territórios antigos, por exemplo, são discutidas religiosamente e acatadas. A Aty Guasu é definida como o único foro legítimo de discussão religiosa e de decisão articulada das lideranças políticas e religiosas dos Guarani e Kaiowá.

Por fim, o que se deve ressaltar, como conclusão parcial do que foi exposto, é a importância da continuidade histórica da luta político-religiosa das lideranças Guarani e Kaiowá. Tonico Benites – Brasil in “Justiça Global Brasil”
__________________

Tonico Benites é Guarani-Kaiowá, mestre e doutorando em Antropologia Social do Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Hoje

Será lançado hoje, dia 26 de Outubro de 2012 pelas 18 horas, no Upper student Lounge, Massasoit Community College, na cidade de Brockton, a cidade mais cabo-verdiana da costa leste dos Estados Unidos da América, no estado de Massachusetts, o primeiro livro do autor cabo-verdiano Mário Semedo com o título "No Silêncio da Noite".

A apresentação da obra caberá ao professor Agnelo A. Montrond e terá a análise crítica da professora Joia Souza. O livro "No Silêncio da Noite" apresenta poesias inéditas, prosas e, reflexões de Mário Semedo sobre os comportamentos da sociedade e da imigração. Baía da Lusofonia

Menino

O menino negro não entrou na roda

O menino negro não entrou na roda
das crianças brancas - as crianças brancas
que brincavam todas numa roda viva
de canções festivas, gargalhadas francas...

O menino negro não entrou na roda.

E chegou o vento junto das crianças
- e bailou com elas e cantou com elas
as canções e danças das suaves brisas,
as canções e danças das brutais procelas.

O menino negro não entrou na roda.

Pássaros, em bando, voaram chilreando
sobre as cabecinhas lindas dos meninos
e pousaram todos em redor. Por fim,
bailaram seus vôos, cantando seus hinos...

O menino negro não entrou na roda.

"Venha cá, pretinho, venha cá brincar"
- disse um dos meninos com seu ar feliz.
A mamã, zelosa, logo fez reparo;
o menino branco já não quis, não quis...

o menino negro não entrou na roda.

O menino negro não entrou na roda
das crianças brancas. Desolado, absorto,
ficou só, parado com olhar cego,
ficou só, calado com voz de morto.

Geraldo Victor – Portugal

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Franchetti


                  Franchetti: o poeta e suas influências

                                                                                I

                Professor titular de Literatura da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor de estudos críticos sobre a poesia brasileira, o romance oitocentista em português e o exotismo, com destaque para os ensaios sobre Camilo Pessanha (1867-1926), Paulo Franchetti vem construindo também, ao longo dos últimos anos, uma trajetória poética de respeito, marcada por uma cosmovisão que se tem mantido coerente, baseada na cultura clássica, mas saudavelmente contaminada pelo bom gosto de alguns nomes representativos da poesia brasileira do século XX.

            Além dos livros de estudos literários, Franchetti já publicou três livros de poesia, Oeste/Nishi (Cotia, Ateliê, 2008), Escarnho (Cotia, Ateliê, 2009) e Memória Futura (Cotia, Ateliê, 2010), lista a que se acrescenta agora Deste Lugar, reunião de versos que marcam a chegada do poeta à maturidade do seu fazer poético.

            Se em Escarnho, Franchetti paga um tributo a Gregório de Matos (1636-1696?), Tomás Pinto Brandão (1664-1743) e outros poetas fesceninos, satíricos e chocarreiros e ao Barroco, em Deste Lugar não se pode deixar de sentir a presença tutelar de Manuel Bandeira (1886-1968) e Camilo Pessanha, poetas que como crítico estudou exaustivamente. De fato, um tópico recorrente em sua poesia é o verso bandeiriano de “Pneumotórox” – a vida inteira que podia ter sido e que não foi – que se pode ler em “O cheiro das mangas na fruteira”, à página 61:

                                   (...) a vida que poderia ter sido
                                   é a vida que por um momento foi


             Neste poema, o poeta parece rememorar noites feéricas que passou em Barcelona e que o diabo, agora no meio de uma noite úmida, traz de volta, balançando “o obscuro passado nas costas do futuro impossível”. Neste livro, aqueles versos de Bandeira – que hoje constituem quase um aforismo – aparecem explicitamente também em mais um poema, ainda que disfarçadamente possam ser localizados em outros. Às páginas 109 e 110, no poema “Minhas filhas me olham”, esse sentimento fica mais à prova quando o poeta, ao contemplar uma fotografia, evoca a família que não se formou porque desfeita por qualquer contratempo da vida:

                                   (...) nossos olhos
                                   têm a mesma compleição:
                                   somos inegavelmente o pai
                                   e suas filhas.
                                   E ali sorrimos, e o esboço
                                   da família que não fomos brilha
                                   mais intenso.
                                   (...) Olho ainda uma vez.
                                   E outras vezes olharei.
                                   O que não pude ter
                                   e o que perdi.

            Essa evocação bandeiriana ainda se percebe em “Outra noite solitária”, à página 59, onde se lê:

                                   (...) O que tenho, o que não tive,
                                   o que passou por mim      
                                   e me arrastou.

                                        II
         Também é possível fixar na poesia da maturidade de Franchetti as imagens evanescentes, a exteriorização da melancolia associada à luz moribunda que são comuns na poesia de Camilo Pessanha que o próprio poeta enquanto crítico apontou em O essencial sobre Camilo Pessanha (Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2008), às páginas 73 e 74. Diz o crítico a respeito de Pessanha que o que determina o seu “olhar melancólico é a reflexividade”, explicando que “tudo o que o sujeito consegue perceber é a si mesmo, tudo o que consegue fazer é duplicar, exteriorizar a melancolia, reencontrar, nos vários fragmentos que ludicamente reordena, o seu próprio olhar”.  Curiosamente, o que o crítico diz a propósito do poeta que analisa é o que também pode servir para definir a sua poesia.


            De fato, em Pessanha a luz fraca, que se apaga, que parece refletir uma “alma lânguida e inerme”, como se lê no poema “Inscrição”, à página 159 de Clepsidra (Lisboa, Seara Nova, 1979), está associada à sensação de melancolia, de nostalgia e de perda e ao crepúsculo e até ao fim da vida. É o que se percebe no poema de Franchetti à página 55, onde se lê:



                                  Todos entramos na morte
                                   por onde a luz é mais fraca e o capacho
                                   está puído e fora do lugar.

             A melancolia é reforçada pela presença de verbos que reforçam a ideia de descenso, de queda, da falta de luz, de solidão. E esta é uma das atmosferas líricas fundamentais na poesia de Franchetti, de que o poema “Assim diria: nós”, à página 100, é um bom exemplo:

                                   Mas em algum lugar
                                   onde a noite é mais escura
                                   e o rio decorre
                                   como a vida aqui decorre,
                                   vejo: o rosto, os cabelos finos, os olhos.
                                   Enquanto dirijo, penso
                                   quanto seria bom,
                                   em cada novo momento,
                                   dizer: nós.

           A aproximação com Pessanha dá-se explicitamente no poema “Macau”, à página 90, quando se sabe que, para desvendar algumas passagens obscuras da vida do poeta, o crítico Franchetti esteve na antiga possessão portuguesa na China, conhecendo os lugares que fizeram parte da vida de auto-exílio do poeta. De lá trouxe estas impressões que se lêem à página 90:

                                   Os chineses fazem pontes curvas.
                                   Os espíritos não passam, seguem em linhas retas.
                                   As noites longas e quentes, no jardim
                                   de Camões, os pássaros da madrugada,
                                   a barraca de macarrão,
                                   cheia de crianças de azul (...).

            Por estas amostras, vê-se que a poesia de Franchetti, a exemplo da de Pessanha, é baseada mais em imagens. Trata-se de um poeta abstrato, essencialmente intelectual, além de douto. Por isso, prefere insinuar ideias e sentimentos em vez de formulá-las, o que também denuncia certa influência de Matsuo Bashô (1644-1694), poeta japonês que é considerado o mestre do haicai. Não por acaso Franchetti é o organizador da antologia Haikai (Campinas, Editora Unicamp, 1990). A Bashô presta homenagem à página 64:

                                   A chuva na folhagem.
                                   Bashô dizia:
                                   sem a visão própria
                                   não há fora nem dentro      . (...).

            E, por extensão, a homenagem vai também para Wenceslau de Moraes (1854-1929), poeta português que viveu muitos anos no Japão e aplicou-se à tradução de haicais, fenômeno literário que o crítico Franchetti analisou num ensaio dedicado ao próprio poeta e que faz parte de Estudos de Literatura Brasileira e Portuguesa (Cotia, Ateliê, 2007).

                                                           III
            Diretor-presidente da Editora Unicamp, Franchetti é autor também de Alguns Aspectos da Teoria da Poesia Concreta (Campinas, Editora Unicamp, 1989), de Nostalgia, Exílio e Melancolia – Leituras de Camilo Pessanha (São Paulo, Edusp, 2001), das edições comentadas de Primo Basílio (1998) e Iracema (2007), ambos publicados pela Ateliê, da edição crítica de Clepsydra, de Camilo Pessanha (Lisboa, Relógio D´Água, 1995), da antologia  As aves que Aqui Gorjeiam – a Poesia do Romantismo ao Simbolismo (Lisboa, Cotovia, 2005) e da novela O Sangue dos Dias Transparentes (Cotia, Ateliê, 2003). Adelto Gonçalves - Brasil
________________
DESTE LUGAR, de Paulo Franchetti. Cotia: Ateliê Editorial, 112 págs., 2012, R$ 27,00. Site: www.atelie.com.br E-mail: contato@atelie.com.br
________________________

Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br









quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Emissário


Foi ontem recebido, dia 23 de Outubro de 2012, pelo Presidente Obiang Nguema Mbasogo no palácio do Povo em Malabo, capital da Guiné Equatorial, o conselheiro presidencial da Guiné-Bissau, o Sr. Klobi, que foi mensageiro de uma carta enviada pelo primeiro-ministro interino de Bissau, Rui Duarte Barros.

Acompanhando o Presidente estava presente o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Guiné Equatorial, Agapito Mba Mokuy, que tomaram conhecimento do desejo do governo de Bissau de enviar uma alta delegação oficial a Malabo, numa tentativa de desbloquear o isolamento a que está sujeito o governo interino da Guiné-Bissau, que emanou do golpe de estado do passado dia 12 de Abril.

A Guiné Equatorial que pretende ser membro da CPLP, organização que exige o retorno constitucional à Guiné-Bissau, não reconhecendo este governo interino chefiado por Rui Duarte Barros, vai no próximo ano realizar eleições gerais, um dos requisitos exigidos pela CPLP para a possível adesão a esta organização, mas certamente a concretizar-se este encontro entre os dois países, Guiné Equatorial e Guiné-Bissau, nada ajudará nas pretensões de Malabo. Baía da Lusofonia

Ops!


“Nos últimos meses estive em vários liceus de secundário a mostrar os alunos e alunas que a nossa língua, contradizendo algumas informações que lhes chegavam, é uma oportunidade de grande valor. Este ateliê, que nasceu de uma ideia do Carlos Figueiras, transformou-se, depois de várias reuniões e reflexões, no Ops!, cujo site, da autoria de Eugénio Outeiro, lançamos hoje.

Ops! é o que exclamamos quando nos apercebemos de algo que já sabíamos mas não alcançávamos a lembrar. Ops! é um ateliê para mostrar a alunos e alunas do nosso sistema educativo que a nossa língua é:

1) uma entrada privilegiada para aceder ao mundo em português

2) a nossa vantagem competitiva no quadro espanhol e europeu.

Ops! nasce por várias razões. Um dos dissabores que me ficou depois de ter finalizado o sistema educativo obrigatório é que nenhum dos 60/70 professores que tive dedicasse quinze minutos a revelar-nos que a língua de Portugal e do Brasil, e portanto as suas sociedades e as suas obras, estavam ao nosso alcance. Ops! vai ao encontro desta carência mas não só:

Nasce para pôr em valor a língua da Galiza, fazendo ver a sua potencialidade e contrabalançando os preconceitos que a subvalorizam.

Nasce porque o português é a sexta língua mais falada no mundo, oficial em 4 continentes e 8 países, sendo um deles o Brasil, uma potência emergente.

Nasce porque o plurilinguismo vai ter cada vez mais valor, promovido pela globalização e as instituições políticas (a começar pela União Europeia).

Nasce porque é em épocas de crise quando é mais preciso afinar onde vamos investir os nossos recursos e depositar a nossa atenção. Afinal, quer uns, quer outros, são limitados.

O ateliê é desenvolvido em português de Portugal ou do Brasil para afirmar a nossa internacionalidade e está dividido em quatro partes. Na primeira revelamos como podemos ler os textos em português à galega. Na segunda mostramos o mundo que se expressa em português e o que temos a ganhar como galegos e galegas. Na terceira, Ops!, lembramos o muito que sabemos mas convidamos a manter a atenção e aprofundar no estudo, e na última trabalhamos com sites que podem permitir que os alunos e as alunas aprendam por eles mesmos, de forma autónoma.

Ops! conta com o seguinte corpo docente para além do coordenador, Valentim R. Fagim, e são Eugénio Outeiro, Antia Cortiças, Noemi Pinheira, Kike Martins e Breogám Vila. A nossa função é comunicar uma boa notícia: a nossa língua é mundial.

Na atualidade, vários concelhos galegos contrataram Ops!: Vigo, Ponte Vedra, Moanha, Redondela, a Corunha, Melide e Ourense bem como centros educativos da Fonsagrada, Cea, Alhariz, Arçua, Lousame e o Barco.

Frente ao preconceito, Ops!” Valentim Fagim – Galiza in “Portal Galego da Língua”

Queiroz


Eça de Queiroz

No dia 16 de agosto de 1900, Eça de Queiroz morria em Paris, com 55 anos. A notícia repercutiu fortemente no Brasil. É que Eça não era aqui apenas um romancista de sucesso. Era já havia tempos a figura idealizada que o jovem Alberto de Oliveira, quando o viu certa vez no Porto, ficou contemplando como se fosse "um pequeno deus". De fato, desde pelo menos a publicação de "Os Maias", em 1888, a intelectualidade brasileira parece ter sido acometida, para usar o termo criado por Monteiro Lobato, por uma "ecite": uma febre ou paixão intensa por Eça de Queiroz, que vai atravessar, sem perder a força, pelo menos as duas primeiras décadas deste século.

A especial afeição brasileira por Eça de Queiroz, porém, parece ser ainda anterior aos anos 80 e deve-se a um conjunto amplo de motivos. Por um lado, o romancista não aparecia ao público apenas como o autor de umas tantas obras-primas. Era uma presença muito mais próxima: um jornalista que escrevia regularmente nos periódicos brasileiros, opinando sobre os mais diversos assuntos.

De fato, só na "Gazeta de Notícias", Eça escreveu durante 16 anos seguidos, a partir de 1880. Além disso, tinha sido um dos jovens rebeldes que, ao lado de Antero de Quental e Teófilo Braga, se empenharam na denúncia do atraso político, moral e científico das nações ibéricas: era um dos representantes da já mítica Geração de 70, iconoclasta e modernizadora. Era também o autor das "Farpas" (1871-72), em que não só satirizara a sociedade portuguesa do seu tempo, mas também ironizara cruelmente o imperador do Brasil, D. Pedro 2º, no momento mesmo em que começava a fortalecer-se o republicanismo no país.

Por tudo isso, no ambiente encharcado de propaganda republicana dos últimos anos do Império e de propaganda antilusitana nos primeiros anos da República, Eça podia ser visto como um aliado progressista: um equivalente, para a vida portuguesa sua contemporânea, do que era o seu amigo Oliveira Martins para o passado dessa mesma sociedade. Quanto a esse ponto, vale ainda observar não apenas que o naturalismo foi geralmente assimilado ao positivismo e à ideologia republicana, mas também que o pensamento de Oliveira Martins ainda em 1902 forneceria a base de um livro tão importante quanto o "América Latina - Males de Origem", de Manuel Bonfim. Por outro lado, é certo que Eça de Queiroz era, sob muitos aspectos, o oposto do outro grande romancista português havia pouco desaparecido, Camilo Castelo Branco. Camilo representava, para a maioria dos escritores brasileiros do tempo, o censor caturra, o ciumento corretor da linguagem utilizada deste lado do Atlântico. Era, além disso, o romancista da predileção da grande colônia portuguesa, que nele via o seu escritor por excelência: o que dispunha suas histórias em linguagem e paisagens legitimamente lusitanas. Eça, por sua vez, exibia uma linguagem muito diferente, de sintaxe mais direta e de vocabulário menos exuberante, cheia de neologismos e estrangeirismos, principalmente galicismos. Tão incorreta talvez, pelos parâmetros de Camilo ou de Castilho, quanto a de Alencar ou de Varela, essa linguagem simples e ágil não recuava tampouco ante o bom-senso ou as conveniências e descrevia de modo muito "realista" os vícios que os primeiros romances do autor visavam a denunciar. "Sórdido como uma página de Eça de Queiroz!" - era assim que um moralista do tempo insultava um poema que julgava pernicioso. E foi graças a "O Primo Basílio" que "realista" e "naturalista" durante um bom tempo foram sinônimos, para o leitor comum, de repulsivo, indecente ou obsceno. Por tudo isso, Eça de Queiroz era, de modo convincente, muito moderno e muito cosmopolita. Mas a substância mais ativa na promoção da "ecite" não foi nenhuma dessas, e sim a célebre ironia queirosiana, que, depois de "O Primo Basílio", vai marcar cada vez mais inconfundivelmente os seus romances, tanto na construção da frase, quanto na composição das personagens. Diferente da ironia romântica que, tal como aparece em Camilo e mesmo em Garrett, tem sempre um travo de amargura, a de Eça supõe uma atitude de espírito de luminosidade constante, um jeito de olhar que ao mesmo tempo promove a crítica dos costumes e reafirma o afastamento do analista em relação ao objeto da sua análise. Reconhecemos logo o estilo de Eça em frases simples como, por exemplo, "encalhado contra o piano, esfregava lentamente as mãos, esmagando o meu embaraço" ou "a figura de Napoleão sobre rochedos enfáticos". É a essa ironia, a esse sistemático olhar analítico, tingido de humor e de ceticismo, que se deve o fato de não haver heróis positivos no elenco dos protagonistas queirosianos. São sempre ou francamente negativos, como a Luísa, de "O Primo Basílio", ou o Raposão, de "A Relíquia", ou ambíguos e esbatidos, como o Gonçalo, de "A Ilustre Casa de Ramires", ou o Carlos, de "Os Maias". As personagens secundárias, por sua vez, são usualmente desenhadas com traço mais forte, ou para rebaixar, por contraste, as principais, ou para proporcionar uma síntese caricatural, reveladora do ambiente da época retratada no romance.

Figura pomposa

Esse procedimento produziu tipos inesquecíveis: o Conselheiro Acácio, o poeta romântico Alencar, a empregada Juliana, o revolucionário e inconsequente João da Ega, entre outros. Desses, a criação mais popular é, sem dúvida, o Conselheiro de "O Primo Basílio", que passou a integrar o patrimônio da mitologia e do vocabulário comum, pois desde os anos 80 do século passado pode-se dizer de qualquer figura pomposa e vazia que é um "acácio" ou que é uma figura "acaciana".

Estruturada a partir desse olhar distanciado e descrente, a narrativa queirosiana não vai firmar o desenvolvimento do enredo romanesco nas paixões, nem na coerência psicológica das personagens ou nas determinações fatais à sua liberdade. Pelo contrário, uma tendência forte do romance de Eça é a de se estruturar em painel mais ou menos alegórico, composto a partir da construção muito realista de situações particulares. Disso resulta uma narrativa cuja unidade não provém da verossimilhança realista do conjunto, mas é construída pelo recurso sistemático à intertextualidade e às simetrias e espelhamentos na construção dos episódios, das cenas e das personagens. Resulta também uma voz narrativa que nunca deixa de enfatizar os aspectos sensórios de cada um deles, destacando o que é mais ridículo, mais sedutor ou apenas mais plástico em cada momento do romance.

Esse conjunto de características da ficção queirosiana faz com que sua obra descreva uma curva que, se tem a sua origem num livro naturalista como "O Crime do Padre Amaro", rapidamente se afasta desse tipo de discurso e método compositivo, em direção ao que A.J. Saraiva denominou "impressionismo".

Esse afastamento já é bastante notável no segundo romance de Eça, "O Primo Basílio". O primeiro a dar conta da novidade desse texto foi o próprio escritor, que, assim que o livro saiu, escreveu a Teófilo Braga e fez um longo ato de contrição por não ter feito um romance ortodoxamente naturalista. Por outro lado, quando o livro foi publicado no Brasil, Machado de Assis logo notou que as suas personagens careciam de determinações fortes de qualquer tipo, fossem internas ou externas, e que o próprio enredo se montava a partir de uma série de acidentes, de casualidades. A autocrítica de Eça era claramente defensiva e por isso apresentava como defeito tudo o que fosse fuga ao receituário naturalista. Já a avaliação de Machado era moralista e se fazia de uma perspectiva marcadamente romântica. Mas ambas acusavam a existência nesse livro de uma nova forma de composição, que só ganhará força desse momento em diante na obra do autor.

Dois anos depois, em 1880, vem a público "O Mandarim", em que se completa o abandono da maneira naturalista. E após mais oito anos, em 1888, Eça publica "Os Maias". É o ponto alto da maturidade do romancista, no pleno domínio de uma maneira própria, e é, também, o ápice da "ecite" no Brasil.

Os dois grandes livros seguintes já serão póstumos: "A Ilustre Casa de Ramires" e "A Cidade e as Serras". Em ambos, acentua-se o traço alegórico e o distanciamento irônico da voz narrativa. Por isso, o primeiro vai ser objeto de graves reparos por parte dos críticos mais fiéis ao paradigma romântico/realista, calcado na verossimilhança psicológica e na construção orgânica da narrativa. A.J. Saraiva, por exemplo, vai escrever que dois defeitos principais de "A Ilustre Casa" são que a personagem central é um títere (é a mesma acusação de Machado a Luísa) e que o livro todo "é pensado, sobreposto e encaixado como as pedras de um edifício".

De fato, desde "O Primo Basílio", que José Régio considerava o mais bem construído romance de Eça, o escritor já pratica um tipo de literatura que, sem ser naturalista, continua a ser anti-romântica e se apresenta afinada com a evolução do romance europeu, principalmente com o esteticismo de um Huysmans, para não mencionar ainda outros escritores de grande voga na virada do século e pouco depois, como Oscar Wilde e Anatole France.

Assim, não é de estranhar que, para os brasileiros do final do século 19 e começo do 20, Eça tivesse encarnado adequadamente o ideal de modernidade; que tivesse representado para os leitores e escritores brasileiros um modelo, em língua portuguesa, do esforço para superar o velho mundo romântico (que no Brasil se confundia com o país monárquico, rural e escravocrata) e construir uma nova cultura: citadina, burguesa e republicana, fundada na instrução e no discernimento do cidadão médio. Um modelo, enfim, daquilo que era o título de um conto belíssimo, temperado de ironia e autocrítica, que Eça publicou originalmente em 1892 na "Gazeta de Notícias" do Rio de Janeiro: "Civilização". Paulo Franchetti - Brasil
_________________________________________________________________________________
Paulo Franchetti é um crítico literário, escritor e professor brasileiro, titular no Departamento de Teoria Literária da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É mestre pela Unicamp, doutor pela USP e livre-docente pela Unicamp. Desde 2002, dirige a Editora da Unicamp.